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Quilombola: Remanescentes do tempo brando

Isolada numa distante serra do brejo paraibano, comunidade de 128 famílias mantém a herança cultural negra, que sobrevive há quase três séculos

TEXTO E FOTOS AUGUSTO PESSOA

01 de Março de 2011

Dona Edite é a porta-voz da memória cultural de sua comunidade

Dona Edite é a porta-voz da memória cultural de sua comunidade

Foto Augusto Pessoa

Vinte quilômetros de terra, pedra e praticamente nenhuma alma no caminho me levam até a sala de dona Edite José da Silva, uma negra de 67 anos, mãe de 23 filhos e atual guardiã da tradição cultural da comunidade quilombola de Caiana dos Crioulos. Chegar a esse isolado recanto do brejo paraibano, habitado desde o século 18 por escravos fugidios, é tarefa penosa. Apenas um ônibus diário – metade ferro, metade poeira – faz o trajeto entre a feira de Alagoa Grande (município onde Caiana está localizada) e a comunidade que abriga 128 famílias remanescentes de quilombolas espalhadas entre as serras que se desdobram à vista. Dona Edite é a porta-voz da memória desse povo, uma espécie de relicário da tradição oral e empenhada defensora da cultura popular local. Em Caiana dos Crioulos, como se costuma dizer por ali, a vida segue no ritmo cadenciado da ciranda, no batuque ritmado do coco de roda e ao inconfundível e afinado som de um pífano de taboca.

Depois de chacoalhar por mais de uma hora para vencer a distância que separa Caiana do resto do mundo, encontro dona Edite percorrendo uma trilha, na caatinga, em pleno pingo do meio-dia. Reconheço a cirandeira pelo típico vestido azul, quase varrendo o chão de barro vermelho. Antes de o sol se pôr, veremos a mulher em outros dois coloridos figurinos. Dona Edite está sempre em movimento. Nascida entre as serras do quilombo e “jurando de pés juntos” jamais abandonar o rincão natal, a brincante se ilumina ao falar sobre a tradição cultural da sua terra. “Lembro, como se fosse hoje, as primeiras vezes que eu vi minha mãe dançar o coco de roda. Era a novena de Nossa Senhora da Conceição.” Ela explica que, naquela época, a manifestação possuía uma naturalidade que está sendo perdida com o tempo. “Não era uma apresentação, era a vida real, mesmo. A gente começava a rezar, daqui a pouco chegava a banda de pífano pra tomar café, ia tocando e, quando a gente via, tava o terreiro cheio e o coco estrondando”, relembra.


Caiana dos Crioulos é uma das 14 áreas oficialmente reconhecidas, na Paraíba, como de origem escrava

Da tradição que reunia centenas de pessoas e mobilizava praticamente toda a comunidade, hoje restam pouco mais de 20 bravas mulheres e alguns homens que executam os instrumentos musicais durante as brincadeiras. Das bandas de pífano, antes marcas registradas do lugar, além das fotografias em preto e branco que dividem espaço com os santos nas paredes, sobrevive a esperança depositada no talento de alguns jovens que ainda resistem ao velho apelo de migrar para o Sudeste em busca de melhores condições de vida. De uns anos para cá, tornaram-se comuns as casas fechadas, em função do êxodo, principalmente, de jovens à procura de melhores oportunidades. Enquanto converso com Dona Edite, um de seus filhos finaliza a arrumação das malas. Está de partida para o Rio de Janeiro. Com a experiência conformada às dificuldades, Edite enxuga as lágrimas e desabafa: “Não é de hoje, não, meu filho, que a gente sofre”. Com mais de 90% de seus habitantes com ancestralidade africana, Caiana dos Crioulos é uma das mais de duas mil comunidades remanescentes de quilombos espalhadas por todo território nacional e uma das 14 áreas oficialmente reconhecidas, na Paraíba, como de origem escrava.

FUNDAÇÃO
Os historiadores não são unânimes quanto à origem do quilombo. Em uma das versões, os negros que fundaram Caiana teriam vindo de Palmares, famoso refúgio escravo da Capitania de Pernambuco, hoje pertencente ao município de União dos Palmares, em Alagoas. Uma outra hipótese, mais romântica, aponta para uma violenta rebelião ocorrida em um navio negreiro aportado na Baía da Traição, litoral norte do estado da Paraíba, lotado de escravos africanos. Os sobreviventes teriam atravessado as falésias e se embrenhado mata adentro até penetrar nas íngremes serras do brejo paraibano. De acordo com Dona Edite, nem seus pais nem seus avós comentavam sobre a origem do lugar. “Ninguém falava nisso, não; acho que tinham medo.” Já em relação ao nome, ela explica que é uma referência à espécie de cana-de-açúcar conhecida como caiana, cultivada desde épocas remotas na região. Hoje em dia, não existem mais engenhos no quilombo, apenas algumas poucas casas de farinha sobreviveram como testemunhas da época em que a comunidade era 100% autossuficiente e politicamente independente do resto do estado.


O único meio regular de chegar ao quilombo é através de um ônibus velho e desconfortável

Enquanto aprecio a sala de dona Edite, decorada com dezenas de imagens de santos católicos e figuras emblemáticas, como o Padre Cícero Romão, tento decifrar o som que sobe a serra empurrado pelo vento. “É a difusora daqui, e essa é a minha voz”, diz, orgulhosa. No alto-falante instalado na única igreja do quilombo, Dona Edite entoa seus cânticos de referências religiosas. Um dos seus filhos rapidamente liga a televisão e coloca um DVD, no qual o grupo de ciranda liderado por Edite faz uma apresentação na feira da cidade de Guarabira (a 100 km de João Pessoa). “Tá vendo, meu filho? Hoje, nós temos energia elétrica, televisão, mas as jovens só querem saber de novela. Ciranda e coco, que é bom, não tão nem aí.” Para a cirandeira, as mudanças recentes em Caiana, como tudo na vida, tem dois lados. O ônibus que me levou até ali, por exemplo, caindo aos pedaços e pintado de poeira por dentro e por fora, é para Dona Edite uma verdadeira bênção. “Antes, a gente não tinha, hoje ele vem todo dia. É meio velhinho, mas não tem tempo ruim pra ele.”

Essa capacidade de se contentar com pouco e ver sempre o lado bom das coisas parece ser algo natural no povo de Caiana. Para dona Maria Nascimento, conhecida como Luzia, duas conquistas recentes são comemoradas com um largo sorriso no rosto. “Antes, a missa era realizada uma vez por mês; hoje, o padre vem toda semana. Se a gente precisava cuidar da saúde, tinha que sair nas carreiras pra Alagoa Grande; hoje, tem um posto de saúde. O que é que eu quero mais? Dançar, né?”, diz a cirandeira de 61 anos, enquanto se espreme numa kombi, que levará o grupo para João Pessoa, a 140 quilômetros dali. Com uma agenda que inclui apresentações em várias cidades da Paraíba, as cirandeiras de Caiana dos Crioulos já gravaram um CD, em 2003, no qual registraram boa parte das canções de domínio público que animam as brincadeiras do grupo. “Vai buscar o zabumba, menino!”, grita o motorista, enquanto as mulheres vão se acomodando no veículo. Nem todas vão à capital. Dessa vez, é uma apresentação rápida e, antes de meia-noite, já devem estar de volta.


Sala da casa de Dona Edite é repleta da imagética cristã

FILHO ILUSTRE
Ajeito-me num cantinho da kombi e embarco com as cirandeiras no rumo de Alagoa Grande. Entre uma e outra curva, aproveito para extrair mais algumas informações. Pergunto à dona Luzia se Jackson do Pandeiro, filho ilustre de Alagoa Grande, teria visitado o quilombo. “Quem? Jackson do Pandeiro? Não. Que eu saiba, ele foi mesmo é para o Rio de Janeiro. Agora, Lampião e seus cangaceiros, esses, sim, passaram por aqui algumas vezes.” Alagoa Grande é uma das muitas cidades históricas do brejo paraibano que ainda resguardam um rico patrimônio colonial, com ruas inteiras de casas decoradas com azulejos portugueses, teatro do século 19 e antigos engenhos de cana-de-açúcar. Anos atrás, foi construído um memorial em homenagem a Jackson do Pandeiro, com fotos antigas, discos originais e roupas do músico. Foi ali, na mesma feira onde tantas vezes as cirandeiras se apresentaram, que o Rei do Ritmo começou sua carreira artística.


Ônibus que vai à cidade é considerado pela comunidade uma “bênção”

Sentada nas raízes de uma mangueira, com um vestido cor de prata e a característica sandália decorada com uma rosa – parte integrante do figurino das cirandeiras –, dona Edite nos espera para a viagem até a capital do estado. “Esse ano (2010), já perdi a conta de quantas vezes fomos nos apresentar fora de Caiana. Graças a Deus!”, agradece a mulher, que, além de cirandeira, é parteira (segundo seus cálculos, trouxe ao mundo mais de 40 crianças), rezadeira (“quando é preciso, eu mesmo rezo”) e agricultora.

Entre gargalhadas e ao som dos instrumentos que balançam instalados no bagageiro, desço a serra imaginando a época em que os escravos fugidos teriam desbravado pela primeira vez essas paisagens. Vinham eles tocando seus instrumentos? Costumavam dançar o coco debaixo dessas grandes árvores nos momentos de descanso? Antes que consiga verbalizar as perguntas, encontro o olhar da matriarca como que a adivinhar meus pensamentos. “Essa ciranda não é de hoje, não; ela é minha, ela é nossa, e vem de muito, muito longe.” 

AUGUSTO PESSOA, jornalista e fotógrafo.

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