“PÓS-RELEASE”
Doutorando em Comunicação pela UFBA, o jornalista Bruno Nogueira conta que, ele mesmo, na função de curador do festival Abril Pro Rock, ficou surpreso com a quantidade de matérias veiculadas na imprensa que apenas copiavam os releases (material de divulgação) fornecidos pela organização do evento. A reprodução desses conteúdos, oferecidos aos jornalistas como fonte de informação, nunca foi proibida, mas o que ocorre está mais para a “livre-apropriação”: textos transcritos são publicados com assinatura de profissionais de redação. “Fico assustado com jornalistas que me perguntam, por exemplo, a qual show devem prestar atenção e até pedem informações posteriores, em que eles possam se basear”, afirma.
Nogueira, que deixou as redações e tem seguido carreira acadêmica, afirma que jornalista é “bicho domado”. Ele defende sua crítica com o seguinte raciocínio: “Se a gente pensar que existem mais assessorias de comunicação que veículos (como jornais e revistas), então encararemos o fato de que hoje existe mais notícia sendo fabricada que apurada”. Ele mesmo se diz vítima da negligência: “Já caí numa dessas com a história de que a Associação da Indústria Fonográfica Americana havia proposto pena de morte para quem baixa música. Não apaguei o post, só risquei e acrescentei embaixo que era tudo enrolação. Bastava uma busca no Google, para checar a veracidade da informação, e eu, mesmo sem deadline, não fui atrás”.
Foi com o intuito de despertar críticas e autocríticas que o jornalista Ricardo Kauffman filmou Abraço corporativo, em que faz um tipo de mea culpa. Kauffman é o criador de Ary Itnem, o citado consultor de recursos humanos que fez sucesso no Youtube (já contabiliza 750 mil acessos). Itnem (interpretado por Leonardo Camilo) é um simpático executivo, a serviço da fictícia Confraria Britânica do Abraço. A empresa implanta mundo afora o “Minuto do Abraço”, uma solução prática para o esgotamento profissional. O assédio no Youtube foi tamanho, que a imprensa logo procurou Itnem. Ainda está disponível uma matéria com o “consultor” no site de O Globo. A “vítima”, na ocasião, foi a jornalista Fabiana Parajara. Ela tentou contato com a suposta sede londrina da Confraria, por e-mail e telefone, tendo de se contentar com uma informação, fornecida pela “assessoria” de Ary Itnem, de que os executivos britânicos estariam numa viagem à Índia.
“A explicação soa como ironia, afinal, como adeptos da teoria da inércia do afastamento, eles acreditam que as novas tecnologias afastam as pessoas. Talvez por isso estejam incomunicáveis”, atestou Parajara, no desfecho da matéria. Via Facebook, Parajara se defende: “Acho que cumpri meu papel. Fui ver quem era, chequei todas as informações disponíveis sobre ele e mostrei ao leitor que não era digno de confiança”. Como boa repórter, desconfiou, mas muito tempo se passaria até que a farsa fosse revelada.
Ironicamente, Kauffman também sai em defesa dos profissionais. O autor do doc-trote (só os jornalistas apressados e enganados são reais no filme, que consiste num apanhado de entrevistas e palestras de Itnem) recorre a seu tempo de jornalismo diário. “Sofri com pautas direcionadas, sustentadas unicamente por declarações e personagens que não param em pé, como grande parte dos colegas. Como muitos da minha geração, que foram educados em redações um tanto neuróticas, no bom sentido, pela checagem, isso sempre me incomodou”, recorda.
A suposta Revolta do Acaju teria inspirado o nome do grupo Móveis Coloniais de Acaju. Foto: Divulgação
Abraço corporativo (em breve em DVD) disseca e satiriza o cotidiano esgotante das redações e a fome de pauta que geram notícias irrelevantes. Kauffman, inclusive, lançou pistas (Ary Itnem é um anagrama de mentira), mas a pegadinha não foi descoberta a tempo. Seu personagem já tinha convencido canais de rádio e televisão, além de jornais. Pelo fato de o documentário não ter “fulanizado uma questão que, a meu ver, é sistêmica”, Kauffman ressalta que pôde manter uma relação posterior saudável com a imprensa.
“BOIMATE”
Mas ele teve sorte. Veículos como o Diário do Nordeste e a revista Época perderam a esportiva, após serem pegos em outros trotes. Ambos publicaram editoriais irados. O jornal cearense tinha publicado, em página cheia, uma entrevista com um tal de Souzousareta Geijutsuka. Levado a sério, o falso japonês foi apresentado como “um dos nomes mais importantes quanto à interface entre arte contemporânea, ciência e novas tecnologias”. O propósito daquele japonês ambicioso era confundir quem tentasse acreditar na proposta.
Interpretado pelo artista plástico cearense Yuri Firmeza, Geijutsuka concedeu uma entrevista tão desconexa, que incomoda. Mas ela era o de menos. Ainda havia a exposição Geijitsu Kakuu, amplamente divulgada pela imprensa local que acreditava poder prestigiar aquele “convite a reflexões sensoriais sobre a fragilidade da vida”, como escreveu Dawlton Moura. À época jornalista do Diário do Nordeste, Moura mencionou os conceitos a serem contemplados por Geijutsuka: “operação em tempo real, simultaneidade, supressão do espaço e imaterialidade”.
Se você não entendeu, o mesmo se passou com Dawlton Moura, quando chegou ao espaço cultural Dragão do Mar, em Fortaleza. A exposição simplesmente não existia, tampouco o oriental. O que havia não era mais que uma placa com os dizeres “Exposição em desmontagem”. E um texto jocoso sobre “a ‘ficção’ de se fazer arte na atualidade”. Moura não tardou em redigir um editorial atacando Firmeza. Foi seguido por outros jornais, um deles (O Povo) chegou a tachar a intervenção de “molecagem”, sem poupar a “classe artística boçal”.
No mesmo editorial, O Povo citou o antológico caso do “boimate”. O rebento de um boi com um tomate foi notícia numa Veja de 1983. Piada de 1° de abril da revista inglesa New Science, o boimate foi anunciado como um divisor de águas da ciência. De acordo com a Veja, poderíamos nos deslumbrar com “um tomate do qual já se colhe algo parecido com um filé ao molho de tomate”. O texto do jornal cearense, porém, frisava que a falha da revista não servia “de consolo”.
O ator norte-americano Joaquin Phoenix conseguiu enganar a imprensa, ao afirmar que abandonaria a carreira para virar rapper. A “transformação” virou documentário.
Foto: Divulgação
INVOLUÇÃO
Outra revista semanal, a Época, foi um dos veículos que também caíram numa pegadinha contemporânea. A “intervenção”, dessa vez, ficou a cargo do grupo Móveis Coloniais de Acaju. Por meses, os candangos enganaram a imprensa com a “fabulosa história” da Revolta do Acaju. Os relatos curiosos da suposta revolta, como a “união dos índios javaés com os portugueses para combater invasores ingleses”, imagine, foram insuficientes para que a mídia desconfiasse a tempo.
A despretensiosa Revolta do Acaju não chegou a figurar entre os assuntos mais debatidos nos Trending Topics do Twitter, mas se revelou uma grande estratégia de marketing viral, discutida amplamente tanto em jornais diários quanto na mídia especializada. A resposta mais incisiva ao “trote grosseiro” partiu da revista, para a qual “muitos jovens estão acostumados a tomar como verdade tudo o que leem na internet”. De fato, a Época é uma revista jovem. Foi fundada em 1998. Mas que jovem nunca se rendeu aos fáceis Ctrl+C (copia) e Ctrl+V (cola)?
A doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Adriana Santana, referiu-se a essa prática, hoje corriqueira, de copiar e colar acriticamente informações para desenvolver sua dissertação de mestrado, defendida em 2005. Naquele ano, realizou seu estudo frequentando a assessoria de comunicação (Assecom) da UFPE e, posteriormente, visitando a redação de um jornal diário recifense. Descobriu que 66% das menções feitas à universidade no veículo eram pautadas pela Assecom. Segundo a pesquisadora, nenhuma das matérias foi crítica. Eram apenas textos neutros ou positivos. Tão positivos quanto os releases que, em alguns casos, foram copiados e reproduzidos integralmente, como se fossem matérias apuradas, ainda de acordo com Santana, fazendo coro com o exemplo de Bruno Nogueira.
Passados mais de cinco anos, como Adriana Santana observa o jornalismo 2.0? “O que houve foi uma involução”, opina. Reconhece, porém, “focos de resistência” nas redações. Exceções que muitas vezes esbarram em limitações estruturais, gerando uma situação que ela define como “autonomia relativa”. Continuando suas pesquisas, ela está em vias de defender sua tese de doutorado, intitulada Jornalismo possível.
De certa forma, fazer jornalismo nunca foi tão “possível”, dada a expansão massiva da web, e sua inerente rapidez. Mas isso em detrimento da análise e da precisão. A discutida Era da Informação ainda está sendo assimilada por suas testemunhas. “Manter credibilidade e checagem nesse espaço infinito que temos hoje é um desafio sem resposta, por enquanto”, aponta Ricardo Kauffman. “Ninguém sabe o que fazer com tanto espaço”, completa.
THIAGO LINS, repórter especial da revista Continente.