Se levarmos em consideração a definição a seguir, sim. Fraude, de acordo com alguns dos principais dicionários da língua portuguesa, significa “todo artifício empregado com o fim de enganar uma pessoa e causar-lhe prejuízo. A fraude traduz a intenção de procurar uma vantagem indevida, patrimonial ou não”.
Pois bem, após a definição, podemos nos remeter a quão prejudicial pode ser a continuação de clássicos por autores novos, ratificando que essa posição não emite, absolutamente, juízo de valor em relação à qualidade desse novo autor, ou seja, não estamos questionando se ele tem ou não a capacidade, propriamente dita, de dar continuidade a um clássico, mesmo porque seria leviano e relativamente inocente, mas, sim, o que uma nova interpretação causaria a esse clássico, enquanto conteúdo.
Não poderíamos sequer imaginar uma continuação de Os lusíadas, que não fosse pelo próprio Camões. A começar pela época, um autor atual, por exemplo, cantaria bravamente, apaixonadamente os tão fortes e decididos e guerreiros versos dessa majestosa obra? Não, pois as grandes conquistas portuguesas, que ficaram num passado longínquo, não estariam na realidade do novo autor.
Mas o que torna a questão mais polêmica e delicada ainda é, segundo a definição, existir a “intenção de procurar uma vantagem indevida”. Nessa passagem, temos a ideia contundente do provável prejuízo causado a outrem, que pode ser a memória do autor, ou o próprio leitor, que se entrega à obra, esperando encontrar nela algo que fosse o próprio autor dando continuidade.
Mas devemos deixar claro que essa provável “fraude” nem sempre terá a intenção de prejudicar a memória do autor ou o leitor, até porque essa releitura ou reescrita pode acontecer também de forma ingênua, mais por vaidade do que por prejuízo, pois quem não gostaria de dar continuidade a um clássico e tentar ter seu nome na história da literatura?
No entanto, a própria “seleção natural” dessa literatura dar-nos-á a resposta. É só imaginar como é difícil, agora, uma continuação de um Grande Sertão: Veredas, ou de um Dom Quixote, por exemplo. Como configurar-se-ia o típico e até personalíssimo vocabulário de Guimarães Rosa, na continuação de outra pessoa? Seria como perder todo um contexto histórico, social e, por que não dizer, emocional.
CLAUDIA DORNBUSCH
Professora de Literatura Alemã da USP
Acredito que a continuação de um original não seja uma fraude. Exemplos: o autor Fredrik Colting fez a aparente continuação da obra O apanhador no campo de centeio, de Salinger, de 1951. O novo autor deu à sua releitura o título 60 anos depois: Do outro lado do campo de centeio, em que o próprio Salinger vira personagem – há, portanto, referência clara ao original.
Soube-se, também, de pelo menos quatro continuações da obra inacabada de Thomas Mann, As confissões do impostor Felix Krull, desde os fins dos anos 1950. Os vários autores retomaram elementos da obra, que levou uma vida inteira para ser escrita e permaneceu inconclusa. A editora de Mann não gostou do fato, mas, em uma das continuações, apenas exigiu que tirasse o nome Krull.
Desde que foi superado o debate em torno do original e da cópia, não podemos chamar de fraude algo que, hoje, em época de open access e literatura interativa, se tornou cotidiano. Creio ser útil mencionar aqui um texto dos anos 1930, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, que me parece atualíssimo. O que é original no século 21? Quem define e estabelece os parâmetros do que tem qualidade, originalidade? O que é plágio num universo de livre acesso a virtualmente tudo?
Às vezes, os grandes clássicos parecem ser intocáveis. É muito salutar que sejam relidos, desmontados, continuados, enfim: redescobertos. Justamente para motivarem o diálogo. Penso que o mais importante nesse debate seja o fato de que a obra “continuada” acabe por ser resgatada, voltando ao debate cultural. Isso é um grande mérito. Na história da literatura, as obras sempre dialogaram umas com as outras, inspirando-se mutuamente. Não entramos aqui no mérito da qualidade literária, o que seria outro debate.
Diz Benjamin, no texto citado, que a obra de arte, a partir de sua reprodutibilidade, perdeu o seu status, passando a objeto de exposição. O caráter único de cada uma, ou seja, a sua aura – para usarmos um termo benjaminiano – depende de sua inserção em uma tradição. Para manter essa aura, a obra precisa estar associada a uma espécie de ritual. A partir do momento em que ela se massifica e perde a sua aura, entra na esfera do objeto de exposição – no mais amplo sentido da palavra. Ela é exposta e se expõe. Inclusive a releituras e continuações. E delas não se pode esquivar.