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O lixo da Cinderela

TEXTO Lúcia Bettencourt

01 de Março de 2011

Lúcia Bettencourt

Lúcia Bettencourt

Foto J. Egberto/Divulgação

Andei assistindo ao documentário Lixo extraordinário, que conta a experiência do Vik Muniz no Aterro de Gramacho, no Rio de Janeiro. Lá, ele encontrou pessoas que vivem do que conseguem extrair das montanhas de despojos, e, usando essas pessoas como modelos fotográficos, colocou-as em posições que lembram quadros famosos, recriando, depois, essas imagens com os fragmentos recolhidos pelos próprios catadores. O resultado final é impactante. Um diálogo através do espaço, do tempo e do estrato social.

O documentário, porém, me causou um certo estranhamento, pois é todo falado em inglês, embora passado aqui no Brasil. Vik fala um inglês razoável, já que vive nos Estados Unidos há alguns anos, mas estava conversando com outros brasileiros em uma língua estrangeira sobre um problema brasileiro. Essa alienação linguística incomoda quase tanto quanto a situação das pessoas retratadas.

Lixo extraordinário comove e nos faz pensar. São muitas as questões que o filme suscita, mas quero me deter em apenas uma: mexer com a vida das pessoas, tirá-las de seu (péssimo) ambiente de trabalho por duas semanas, levá-las a Londres ou mesmo apenas ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e depois deixá-las no ponto de partida, com uma visão crítica de seu cotidiano – isso traz algum benefício para essas pessoas ou só faz com que os idealizadores do projeto durmam um pouco mais felizes, sentindo-se os benfeitores de um pequeno grupo?

Essa questão é levantada no próprio filme, pelos seus empreendedores, mas é deixada em aberto, após a afirmação que o artista faz, e que eu tento transcrever aqui: “Se fosse eu que estivesse ali e alguém me perguntasse se eu queria sair do aterro e viajar para o estrangeiro e depois voltar, eu ia adorar”. Não discuto isso. Acho que todos nós optaríamos por ter nosso momento cinderela, ao invés de passarmos a vida como meras borralheiras. Concretizar um sonho, mesmo fugazmente, ainda assim é uma realização.

O que talvez precise ser discutido é a história da própria Cinderela. Com seu final feliz e clichê, com o príncipe que a resgata da miséria e lhe oferece um final “feliz para sempre”, chegamos à principal ansiedade de nossa vida moderna: uma felicidade que nunca se acabe. Temos que ser felizes a qualquer custo, e por toda a nossa vida.

Acontece que a felicidade é uma coisa relativa: precisamos não ser felizes, para podermos compreender que somos felizes. Senão, passamos a ter uma vida tediosa e repetitiva, como a retratada no filme de Sophia Coppola, Um lugar qualquer. Mas aí já é outro filme, assunto para outra crônica… 

LÚCIA BETTENCOURT, ficcionista.

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