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Lula, Vargas e as leis trabalhistas

O brasilianista norte-americano John D. French compara os governos trabalhistas dos dois presidentes, a partir de aproximações históricas e diferentes relações com o povo

TEXTO Daniel Buarque

01 de Março de 2011

John D. French

John D. French

Foto Divulgação

Os movimentos trabalhistas do Brasil fecharam em dezembro de 2010 um ciclo histórico, quando Luiz Inácio Lula da Silva deixou a presidência após oito anos de governo, com níveis recordes de aprovação popular. O historiador americano John D. French conta que Getúlio Vargas, quando governava o Brasil, fez um discurso para os operários em que dizia ter lhes dado a liberdade, por conta da CLT (lei trabalhista de 1943), e que, no futuro, seria a vez de um daqueles operários liderar o Brasil. “Um ciclo perfeito com a chegada de Lula ao poder”, diz French.

Professor da Universidade Duke, na Carolina do Norte, ele é doutor pela Universidade Yale, e especialista em movimentos trabalhistas no Brasil, onde viveu por muitos anos. Seu principal trabalho é o livro Drowning in laws: Labor law and brazilian political culture (Afogando-se em leis: Lei trabalhista e cultura política brasileira), versão lançada em 2004, em inglês – e mais completa –, do estudo Afogado em leis, lançado anteriormente no Brasil. Trata-se de um resumo de anos de estudos no ABC Paulista, acompanhando os movimentos trabalhistas da região e relacionando-os à história política e econômica do Brasil.

Entre 2002 e 2010, diz, Lula concretizou a previsão de Getúlio Vargas, que, assim como ele, entrou para a história como “mãe dos ricos e pai dos pobres”, capaz de gerar riqueza para quem já tinha dinheiro e ajudar os que não tinham a melhorar de vida. Admirador do governo Lula, French diz que se podem traçar paralelos entre a carreira política do ex-operário com a de Vargas, e que os dois ajudaram a moldar o país.

Apesar da importância histórica e da popularidade dos dois líderes, nenhum deles conseguiu mudar a relação que o Brasil tem com sua legislação. Partindo do exemplo das leis trabalhistas, que muitas vezes são apontadas como vilãs para o desenvolvimento econômico do país, French explica que o Brasil tem um abismo entre a teoria e a prática das leis. A famosa piada das “leis que não pegam”, segundo ele, reflete uma característica jurídica do país, sempre preocupado em ter leis antenadas com o mundo desenvolvido, mesmo que elas nunca se adaptem à realidade do seu povo. “O Brasil é uma sociedade cheia de leis, mas ao mesmo tempo uma sociedade sem leis”, diz French, que concedeu à Continente a entrevista abaixo.

CONTINENTE Na introdução da edição americana de Afogado em leis, o senhor menciona que Vargas conseguiu se tornar um líder visto como “mãe dos ricos e pai dos pobres”... Se pensarmos nos oito anos de governo Luiz Inácio Lula da Silva, encerrados em dezembro passado, com crescimento econômico e ascensão social, o Brasil não parece ter vivido algo semelhante a isso? É possível comparar os dois presidentes?
JOHN D. FRENCH Lula se mostrou capaz de reunir, em um único grupo, gente de todos os espectros políticos. Essa capacidade de reunir pessoas de diferentes opiniões vem desde sua formação nos sindicatos, e no PT. Em cada estágio da sua vida, ele se mostrou capaz de assumir a habilidade de liderança, pensando em longo prazo e de forma pragmática, tentando evitar conflito sempre que possível. Lula não é como Hugo Chávez (presidente da Venezuela), ele não tem inimigos. Ele levou essa habilidade ao nível nacional, e isso fez com que fosse um presidente bem-sucedido. É verdade que isso tem alguma relação com o que Vargas havia feito. Lula se mostrou um bom estudante, que aprendeu tudo. Entretanto, Lula e a esquerda brasileira nunca gostaram muito da referência a Vargas, pois ele foi um ditador capaz de atos violentos. Por outro lado, olhando para trás, não há dúvida de que ele ajudou a moldar o Brasil moderno, e isso não pode ser ignorado. As diferenças entre os dois são a origem humilde e o fato de que Vargas não era exatamente um democrata. Ele tinha uma visão de como melhorar a vida das pessoas pobres, mas não era um igualitarista. Além disso, Vargas nunca foi um bom falador. Ele não conseguia fazer discursos que o ligassem às pessoas mais pobres, como Lula faz, que consegue estar do lado do povo, mostrando que ele virou presidente, mas continua sendo um deles. Lula, hoje, é capaz de falar corretamente, se ele quiser, mas ele fala a língua do povo, cometendo os erros que o povo comete. Ainda assim, há uma relação entre os dois. Há um momento muito interessante em que Vargas fala para os operários brasileiros e diz que lhes deu a liberdade – o que é um exagero da parte dele –, e, em seguida, diz que no futuro vai ser a vez de um deles liderar o Brasil, o que é um ciclo perfeito com a chegada de Lula ao poder.

CONTINENTE Qual vai ser o lugar de Lula na história do Brasil?
JOHN D. FRENCH Lula foi bem. Não acho que Fernando Henrique Cardoso tenha ido mal na presidência, especialmente em comparação com o governo Collor, mas penso que daqui a 25 anos vamos olhar para a história e ver que o caminho tomado pelo Brasil foi definido muito mais pelo governo Lula do que pelo de Fernando Henrique. Isso é, em parte, por sorte, por ser uma história fantástica, e porque foi uma surpresa, já que ninguém esperava que ele fosse um bom administrador. Até 2002, eu achava que ele nunca seria eleito. Quando foi, mesmo sem nenhuma experiência executiva, e com toda razão para acreditarmos que não seria tão bom como presidente, todos ficamos surpresos. O próprio José Serra reconheceu isso. Passou-se tanto tempo subestimando-o, que essa surpresa é importante. Podemos falar sobre a melhora na qualidade de vida das pessoas mais pobres, o declínio da desigualdade, mas a maior mudança foi uma revolução cultural. Ele tem uma enorme importância para a autoestima das pessoas mais pobres, que passaram a achar que elas podem fazer algo com suas vidas. Isso vai além de Lula, entretanto. Fico impressionado com o quanto o Brasil mudou desde 1980, quando cheguei ao país pela primeira vez. Cada vez que volto, vejo coisas novas, a sociedade está mudando rapidamente, o que é impressionante e empolgante. Isso está em todas as áreas: negócios, política, movimentos sociais; é uma sociedade muito dinâmica.


Getúlio Vargas. Foto: Reprodução

CONTINENTE Em 2009, a revista The Economist publicou uma longa reportagem de capa a respeito do desenvolvimento econômico do Brasil nos últimos anos, alegando que o país se tornava mais próximo da potência internacional que sempre prometeu ser. O maior obstáculo para o seu crescimento, segundo a revista, são as leis trabalhistas, que dificultam a operação de grandes empresas. O senhor analisou profundamente a CLT e as leis trabalhistas brasileiras. Concorda com essa avaliação?
JOHN D. FRENCH Há um enorme exagero nisso que chamam de “custo Brasil” – a ideia de que investir no país sai caro e pode não valer a pena. Essa era uma grande questão do neoliberalismo nos anos 1990, tanto no governo de Collor (1990-1992) quanto no de FHC (1994-2002). O argumento era o de que o Brasil, especialmente por causa da sua legislação trabalhista, estava em desvantagem na corrida competitiva da globalização. Não acho que isso seja totalmente verdade. Não concordo com a Economist, e penso que a posição ideológica deles em defesa do mercado livre está muito clara. Não me parece que a evidência dos últimos oito anos, do governo Lula, indique que a CLT seja um problema. Não houve nenhuma flexibilização na essência ou na estrutura da lei, ou nenhum afrouxamento na cobertura legal, e, mesmo assim, o Brasil cresceu e se desenvolveu. As mudanças que haviam sido iniciadas com Fernando Henrique foram interrompidas por Lula. Mesmo sem uma mudança na essência da lei, nos últimos anos, a economia do Brasil tem se dado muito bem, com aumento do emprego formal, com progresso. Entretanto, o mais importante é que, mesmo sem uma transformação no texto da lei, por conta da má aplicação das leis trabalhistas no Brasil, a CLT acabou sendo essencialmente flexibilizada desde o começo. Não acredito que ela seja, em si, um obstáculo para o desenvolvimento econômico do Brasil.

CONTINENTE Mesmo sem a prática se igualar à teoria das leis trabalhistas, existe essa visão internacional de que o Brasil tem leis que dificultam a contratação e, em última instância, o lucro. Essa “mitologia”, como o senhor diz, pode gerar preconceito e afastar o investimento estrangeiro no Brasil?
JOHN D. FRENCH O investimento internacional vai para locais em que os investidores acham que vão ganhar dinheiro. O neoliberalismo funcionou nos anos 1990 com o argumento de que havia apenas um caminho para o futuro e que, se os países em desenvolvimentos não seguissem as regras X, Y e Z, eles iriam fracassar na tentativa de atrair investimento estrangeiro. Mais uma vez, acho que o caso brasileiro nos últimos oito anos prova que não é bem assim. O Brasil parou de tentar enfraquecer as leis trabalhistas para acomodar os interesses dos empregadores, e, mesmo assim, o investimento estrangeiro só cresce. As leis trabalhistas servem como uma forma de criticar as injustiças nas relações de emprego no Brasil. A experiência de usar a lei mostra que a realidade não é tão boa quanto o que está no papel. Isso até vem se transformando nos anos recentes, mas menos por uma questão legal do que por conta da democracia, que permite uma maior liberdade para a ação trabalhista – atacada à época da ditadura militar. Os trabalhadores no Brasil estão em uma situação melhor, atualmente, do que estavam nos anos 1970, e isso é por causa da democracia, não por mudanças na lei. A lei é mais real, hoje, para mais gente do que era no passado. Isso é um progresso, e mostra que as pessoas mais pobres ganharam força desde o fim da ditadura. No Brasil, acredita-se que as leis trabalhistas são injustas, que a justiça é morosa e que não há aplicação delas, mas apenas corrupção. O discurso é que a lei é uma fraude. Isso vale para outros tipos, mas especialmente para as leis trabalhistas. Ao mesmo tempo, há uma mentalidade e um reconhecimento, de mais de duas décadas, de que a existência de qualquer tipo de norma garante uma cobertura mínima para os trabalhadores, e que, se essas normas forem flexibilizadas formalmente pelo governo, os empregadores brasileiros iriam tirar vantagem da falta de coberturas oferecidas aos trabalhadores.


Foto: Reprodução

CONTINENTE O senhor mencionou que isso acontece com outras leis. É um traço do perfil brasileiro essa adaptação das leis entre a teoria e a prática?
JOHN D. FRENCH O Brasil tem o costume de se apropriar dos procedimentos legais de uma forma própria. O país tem as leis mais avançadas para menores e adolescentes, de 1989, mas isso não impede o trabalho infantil no país, por exemplo. A elite letrada do Brasil tem historicamente criado um mundo alternativo nas leis que são colocadas no papel. Isso vem desde a emancipação de escravos. Ela cria mundos imaginários de perfeição, que a faz pensar que está participando de uma tendência global, como se a realidade do Brasil e dos países da Europa fosse a mesma.

Há o desejo de ter leis perfeitas, mais avançadas do que em qualquer país do mundo, mesmo que elas nem sempre funcionem na prática. É o que acontece com as penas capitais, por exemplo. O Brasil não tem penas capitais em suas leis, ao contrário dos Estados Unidos, mas, na prática, o Brasil executa mais gente por ano do que os Estados Unidos, quase tantos quanto a China. O fato é que o Brasil quer ser progressista na forma das leis, mas a realidade é diferente; a política mata centenas de pessoas por ano, sem se responsabilizar por isso. O Brasil é uma sociedade cheia de leis, mas ao mesmo tempo uma sociedade sem leis. 

DANIEL BUARQUE, jornalista e autor de Por um fio – O mundo explicado pelo telefone.

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