CONTINENTE Qual vai ser o lugar de Lula na história do Brasil?
JOHN D. FRENCH Lula foi bem. Não acho que Fernando Henrique Cardoso tenha ido mal na presidência, especialmente em comparação com o governo Collor, mas penso que daqui a 25 anos vamos olhar para a história e ver que o caminho tomado pelo Brasil foi definido muito mais pelo governo Lula do que pelo de Fernando Henrique. Isso é, em parte, por sorte, por ser uma história fantástica, e porque foi uma surpresa, já que ninguém esperava que ele fosse um bom administrador. Até 2002, eu achava que ele nunca seria eleito. Quando foi, mesmo sem nenhuma experiência executiva, e com toda razão para acreditarmos que não seria tão bom como presidente, todos ficamos surpresos. O próprio José Serra reconheceu isso. Passou-se tanto tempo subestimando-o, que essa surpresa é importante. Podemos falar sobre a melhora na qualidade de vida das pessoas mais pobres, o declínio da desigualdade, mas a maior mudança foi uma revolução cultural. Ele tem uma enorme importância para a autoestima das pessoas mais pobres, que passaram a achar que elas podem fazer algo com suas vidas. Isso vai além de Lula, entretanto. Fico impressionado com o quanto o Brasil mudou desde 1980, quando cheguei ao país pela primeira vez. Cada vez que volto, vejo coisas novas, a sociedade está mudando rapidamente, o que é impressionante e empolgante. Isso está em todas as áreas: negócios, política, movimentos sociais; é uma sociedade muito dinâmica.
Getúlio Vargas. Foto: Reprodução
CONTINENTE Em 2009, a revista The Economist publicou uma longa reportagem de capa a respeito do desenvolvimento econômico do Brasil nos últimos anos, alegando que o país se tornava mais próximo da potência internacional que sempre prometeu ser. O maior obstáculo para o seu crescimento, segundo a revista, são as leis trabalhistas, que dificultam a operação de grandes empresas. O senhor analisou profundamente a CLT e as leis trabalhistas brasileiras. Concorda com essa avaliação?
JOHN D. FRENCH Há um enorme exagero nisso que chamam de “custo Brasil” – a ideia de que investir no país sai caro e pode não valer a pena. Essa era uma grande questão do neoliberalismo nos anos 1990, tanto no governo de Collor (1990-1992) quanto no de FHC (1994-2002). O argumento era o de que o Brasil, especialmente por causa da sua legislação trabalhista, estava em desvantagem na corrida competitiva da globalização. Não acho que isso seja totalmente verdade. Não concordo com a Economist, e penso que a posição ideológica deles em defesa do mercado livre está muito clara. Não me parece que a evidência dos últimos oito anos, do governo Lula, indique que a CLT seja um problema. Não houve nenhuma flexibilização na essência ou na estrutura da lei, ou nenhum afrouxamento na cobertura legal, e, mesmo assim, o Brasil cresceu e se desenvolveu. As mudanças que haviam sido iniciadas com Fernando Henrique foram interrompidas por Lula. Mesmo sem uma mudança na essência da lei, nos últimos anos, a economia do Brasil tem se dado muito bem, com aumento do emprego formal, com progresso. Entretanto, o mais importante é que, mesmo sem uma transformação no texto da lei, por conta da má aplicação das leis trabalhistas no Brasil, a CLT acabou sendo essencialmente flexibilizada desde o começo. Não acredito que ela seja, em si, um obstáculo para o desenvolvimento econômico do Brasil.
CONTINENTE Mesmo sem a prática se igualar à teoria das leis trabalhistas, existe essa visão internacional de que o Brasil tem leis que dificultam a contratação e, em última instância, o lucro. Essa “mitologia”, como o senhor diz, pode gerar preconceito e afastar o investimento estrangeiro no Brasil?
JOHN D. FRENCH O investimento internacional vai para locais em que os investidores acham que vão ganhar dinheiro. O neoliberalismo funcionou nos anos 1990 com o argumento de que havia apenas um caminho para o futuro e que, se os países em desenvolvimentos não seguissem as regras X, Y e Z, eles iriam fracassar na tentativa de atrair investimento estrangeiro. Mais uma vez, acho que o caso brasileiro nos últimos oito anos prova que não é bem assim. O Brasil parou de tentar enfraquecer as leis trabalhistas para acomodar os interesses dos empregadores, e, mesmo assim, o investimento estrangeiro só cresce. As leis trabalhistas servem como uma forma de criticar as injustiças nas relações de emprego no Brasil. A experiência de usar a lei mostra que a realidade não é tão boa quanto o que está no papel. Isso até vem se transformando nos anos recentes, mas menos por uma questão legal do que por conta da democracia, que permite uma maior liberdade para a ação trabalhista – atacada à época da ditadura militar. Os trabalhadores no Brasil estão em uma situação melhor, atualmente, do que estavam nos anos 1970, e isso é por causa da democracia, não por mudanças na lei. A lei é mais real, hoje, para mais gente do que era no passado. Isso é um progresso, e mostra que as pessoas mais pobres ganharam força desde o fim da ditadura. No Brasil, acredita-se que as leis trabalhistas são injustas, que a justiça é morosa e que não há aplicação delas, mas apenas corrupção. O discurso é que a lei é uma fraude. Isso vale para outros tipos, mas especialmente para as leis trabalhistas. Ao mesmo tempo, há uma mentalidade e um reconhecimento, de mais de duas décadas, de que a existência de qualquer tipo de norma garante uma cobertura mínima para os trabalhadores, e que, se essas normas forem flexibilizadas formalmente pelo governo, os empregadores brasileiros iriam tirar vantagem da falta de coberturas oferecidas aos trabalhadores.
Foto: Reprodução
CONTINENTE O senhor mencionou que isso acontece com outras leis. É um traço do perfil brasileiro essa adaptação das leis entre a teoria e a prática?
JOHN D. FRENCH O Brasil tem o costume de se apropriar dos procedimentos legais de uma forma própria. O país tem as leis mais avançadas para menores e adolescentes, de 1989, mas isso não impede o trabalho infantil no país, por exemplo. A elite letrada do Brasil tem historicamente criado um mundo alternativo nas leis que são colocadas no papel. Isso vem desde a emancipação de escravos. Ela cria mundos imaginários de perfeição, que a faz pensar que está participando de uma tendência global, como se a realidade do Brasil e dos países da Europa fosse a mesma.
Há o desejo de ter leis perfeitas, mais avançadas do que em qualquer país do mundo, mesmo que elas nem sempre funcionem na prática. É o que acontece com as penas capitais, por exemplo. O Brasil não tem penas capitais em suas leis, ao contrário dos Estados Unidos, mas, na prática, o Brasil executa mais gente por ano do que os Estados Unidos, quase tantos quanto a China. O fato é que o Brasil quer ser progressista na forma das leis, mas a realidade é diferente; a política mata centenas de pessoas por ano, sem se responsabilizar por isso. O Brasil é uma sociedade cheia de leis, mas ao mesmo tempo uma sociedade sem leis.
DANIEL BUARQUE, jornalista e autor de Por um fio – O mundo explicado pelo telefone.