Arquivo

Delano (1945-2010)

TEXTO José Cláudio

01 de Março de 2011

'A bela faxineira', de José Cláudio. Óleo sobre eucatex, 65 x 54cm, 1983.

'A bela faxineira', de José Cláudio. Óleo sobre eucatex, 65 x 54cm, 1983.

Imagem Reprodução

Franklin Delano de França e Silva (Buíque, PE, 29/abril/1945-Recife, PE, 17/dez./2010). Oh, Delano, eu tinha até um quadro para te mostrar, uma tela de eucatex já preparada que me mandaste de presente, no verso uma poesia toda em caixa-alta, inclusive a assinatura “DELANO 9/5/78”. Oh, rapaz, isso é lá hora de morrer?

Você, camarada, nem esperou pela saideira. Se foi silenciosamente tanto quanto entrou nas nossas vidas. E sem saber se entrou e talvez nós também não soubéssemos, se e até que ponto. No meu caso, por exemplo, cabal mesmo, sentindo que estávamos amarrados pelo rabo, ou pelas tripas, só vim a perceber de fato na tua exposição do MAC, Olinda, que era como se me mostrasses o quanto eu poderia ter andado, como se fosses meu irmão mais velho. E quanto aos outros? Meu filho, Mané, disse, naquela manhã triste, “ele foi meu professor de desenho” num tom que queria dizer tanta coisa! Quantos não se darão conta de quão poucos momentos ou poucas vezes puderam gozar da tua presença, esse teu riso como se desculpando, essa tua inata fidalguia: haverá no mundo alguém que tenha alguma queixa de Delano?

Mas ninguém confundisse a sua doçura natural com fraqueza: era de firmeza inabalável como sua obra demonstra, um caminho dificílimo de que somente ele tinha o segredo, nos deixando muitas vezes surpreso, tão fino o fio de navalha por onde medrava.


Poema de Delano. Imagem: Reprodução

Ai, as exigências da tela! As exigências de nós. Onde orgulho e presunção e vaidade extremos são sinônimos de humildade também tão extrema nesse mundo de extremos a que nos convida a sua brancura de donzela indefesa, submissa até o assassínio.

Como a vida é injusta e curta. Ou sábia. Por ter percebido, com seu olho sábio, a completitude da obra, o legado em sua inteireza, o fruto em seu melhor ponto de colheita, para espanto do autor. E só nos resta, incluir-se-ia aí o mesmo autor, olhá-lo, ao fruto, ou olhá-la, à obra, como se fazendo parte de outra existência. No máximo, tirar partido deste para outros quadros, desta para outras vidas: sim, porque o quadro, ou a obra como um todo, continuará florando através, ou por excelência, na obra de outros autores, pintores ou não (lembrando-me agora do belíssimo romance A menina morta, de Cornélio Pena, inspirado num quadro), clima propício, terra fecunda, semente sempre pronta à germinação, o que equivale a comê-lo, a esse fruto ideal, alimentarmo-nos dele. A arte é uma nave em que nos alimentamos uns dos outros, não somente a antropofagia modernista de o nativo devorar o europeu ou estrangeiro mas nós próprios nativos nos alimentarmos uns dos outros como os próprios índios faziam entre si. A arte brasileira, graças a pintores como você, Delano, já tem carne.

“Ele tinha um quadro de uns lutadores de boxe que toda vez que eu ia na casa dele pedia pra ver”, disse Marcos, que faz molduras. “Um branco e outro preto. Eu achava arretado.” Lembrou-se e riu. “Delano me contou que uma noite já estava deitado quando ouviu aqueles gritos de uma mulher na rua: ‘Me acuda! Me acuda!’ Ele foi 1á ver. Era um cara querendo estuprar uma mulher, a mulher derrubada no chão na calçada. Delano foi lá dentro, ele disse que tinha uma espingarda de ar comprimido mas com um tiro forte que parecia um revólver quando disparava. Abriu a janela e deu um tiro. E disse: ‘Deixe a moça aí, cabra safado! Vá simbora agora!’ O cara tomou um susto, saiu correndo. Delano disse à mulher: ‘Vá simbora também, corra pro outro lado pra ele não lhe encontrar!’ A moça levantou-se de um salto e se escafedeu ladeira abaixo que não se via nem o vulto.”

Voltando à tela com o teu poema atrás, de que falo no início: Carlos Pena, no soneto Para fazer um soneto, dá a receita, não para um quadro, para um soneto, também para um quadro, desde o primeiro ingrediente, coisa de pintor, “Tome um pouco de azul, se a tarde é clara”, passando por cada um dos segredos de uma possível culinária da poesia e, no final, o pulo do gato: “ponha tudo de lado e então comece”. O problema era que, assim que eu pegava na tela, ia ler a poesia. Isso me inibia. Formato diferente dos meus habituais, em pé ficava baixa e, deitada, estreita. Agora me vem que dava bom para natureza-morta mas, como já está pintada há 28 anos, me doía pintar por cima (A bela faxineira, 65x54cm, 1983) embora não tivesse coragem de mostrá-la a Delano: só ousei pintá-la porque um belo dia precisei de uma tela mais ou menos desse tamanho e não tinha outra no momento, sem me dar conta de que era a tela de Delano. Anos depois, notei o poema escrito nas costas, não correspondendo a pintura nem às exigências da tela nem às minhas nem às de Delano. Por aí se vê o respeito que lhe tinha. Vou dá-la a Macira, sua mulher, como flor singela jogada junto com a terra na hora do enterro em cima do caixão. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

veja também

O lixo da Cinderela

Qual o sentido das palavas de plástico?

Viagem narcísica e perturbadora