FOTOS LÉO CALDAS
01 de Fevereiro de 2011
O Mercado da Boa Vista é um dos locais onde se reúnem bambas como Jorge Ribas (ao centro, de branco)
Foto Léo Caldas
“É o segundo mercado para o samba no país, tem público mais do que no Rio. Os dois maiores mercados para o samba, hoje: São Paulo, depois o Recife”, quem faz a afirmação, no mínimo, ousada, é Antônio José de Santana, ou melhor, Belo Xis, apelido que carrega desde criança. Ele vem acompanhando a evolução do gênero em Pernambuco há mais de três décadas. Ex-goleiro, na extinta categoria aspirante de times como o América e o Santa Cruz, pertenceu também ao Vasco carioca, e ao São Domingos alagoano, quando deixou os gramados e adentrou nas passarelas do samba. Integrou a bateria de Estudantes de São José, foi puxador de samba e da ala de compositores. Nos últimos anos, está na Gigantes do Samba, como puxador e compositor (no Rio, também compõe para a Mocidade de Padre Miguel).
Ele é dos poucos autores renomados de música que se dedicam atualmente às escolas. A decadência dessas agremiações levou ao afastamento de quase todos. “Gigantes, se não fosse a intervenção da comunidade, e ter sede própria, já teria deixado de sair. No passado, a força do jogo do bicho sustentava a maioria das escolas”, comenta Jorge Ribas. Belo Xis emenda: “As escolas caíram muito por falta de apoio. Chega o Carnaval e a verba que recebem da prefeitura é de R$ 10 mil. Ora, para as fantasias de uma escola saírem, a despesa é de, pelo menos, R$ 50 mil. A Gigantes está numa fase boa, vem ganhando há quatro anos. Teve sorte de ter como presidente o senhor Lacerda, policial aposentado, que consegue motivar a comunidade da Bomba do Hemetério em torno da agremiação”.
Belo Xis lembra os velhos tempos, quando o desfile do primeiro grupo na passarela do samba, na Dantas Barreto, era televisionado, e passava ao vivo: “Hoje em dia, pouca gente se importa com as escolas”, queixa-se o veterano sambista. Ele comanda o projeto Roda de bamba é 10, que acontece às quintas-feiras, na Rua da Moeda: “Reunimos ali os 10 melhores sambistas do Recife – digo, os que fazem samba exclusivamente de raiz. Cantamos tanto o samba autoral quanto os sambas clássicos que o povo gosta de cantar”, diz ele, que também frequenta outros pontos obrigatórios da cidade, entre esses a tradicional roda de samba criada por Valdemir de Souza, mais conhecida como Pagode do Didi, que funciona, todas as noites, na Rua Ulhoa Cintra, onde até a década de 1980 funcionava um dos restaurantes mais chiques do Recife, o Adega da Mouraria. Nessa rua do Bairro de Santo Antônio, há mais de duas décadas, a ordem é o samba. Ali se pode cantar, ou dançar, o autêntico pagode (que nada tem a ver com os grupos de pagodejo, ou cantores como Belo e Alexandre Pires).
O local não é dos mais requintados, mas ali o samba é farto. Os sambistas cariocas já conhecem o pedaço. Arlindo Cruz, por exemplo. O lugar rivaliza com o Refúgio da Vanda, criado por Evanilda de Albuquerque Maranhão, na Torre.
CLUBES E RODAS
Mas enquanto o Pagode do Didi e o Refúgio da Vanda abrigam sambistas calejados, com mais tempo nas batucadas da vida, alguns ex-integrantes de grupos como Samba 5 ou Samba Chic, que animavam de rodas de pagode até bailes de carnaval, vêm surgindo novos points para o samba. Um deles é o Morro da Conceição, onde o ritmo fez morada há décadas. Lá acontece, aos domingos, a reunião do Clube do Samba, idealizado pela cantora Karynna Spinelli, e que conta com a participação de sambistas locais e de outros estados, sobretudo do Rio de Janeiro.
Segundo Maurício Spinelli, irmão de Karynna (de quem também é produtor), inicialmente, o Clube do Samba foi bancado pelos integrantes e por doações de simpatizantes: “Depois, aprovamos um projeto pelo SIC, mas a empresa ‘fuleirou’ com a gente e não nos repassou toda a grana que era devida. Voltamos às doações e lançamos uma campanha para os frequentadores contribuírem com qualquer quantia, um real, cinco reais, para conseguirmos fazer o evento. Podíamos optar por algum espaço fechado, mas não é o que queremos”. Karynna e o irmão valeram-se da rede social Facebook para divulgar a primeira edição de 2011 do Clube do Samba, que recebe o reforço de outros sócios-fundadores: Lucas dos Prazeres, Rubem França e Daniel Coimbra.
Além desses “clubes”, há os sambistas que correm por fora, não exatamente ligados a grupos. É o caso do jornalista Xico de Assis, que, em se tratando de samba, confessa que prefere as composições de autores clássicos: “O samba do passado é uma crônica cantada. Paulo Vanzolini, em Juízo final, é tudo de bom. Nada se compara aos sambas de Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Ataulfo Alves (com a Seu Oscar, dele e Wilson Batista), Assis Valente, Geraldo Pereira, Wilson Batista... Lógico que existe uma geração maravilhosa: Paulinho da Viola, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho... Mas todos esses bebem ainda na fonte dos grandes mestres”.
O Trio Pouca Chinfra, um dos destaques da nova geração, já lançou o segundo CD
Xico de Assis, que tem feito temporadas, aos sábados, no Bar Biruta, no Pina, também elogia os novos sambistas pernambucanos: Rui Ribeiro, Paulo Perdigão, Dona Selma do Samba, Belo Xis, Manezinho da Gigantes, gosta também dos sambas de Zecafofinho. Xico, por vezes, parece saído do túnel do tempo. Da nova cena de sambistas pernambucana, ele é o único que passou pelo hoje extinto programa de calouros na TV Jornal, e viu, ainda criança, estrelas do Rádio de grande sucesso no estado, nos anos 1960: “Nerize Paiva, com Vai lavar teu siri, fazia o auditório tremer, assim como Mêves Gama, Woleide Dantas, Eunice Paiva e Marlene Baiana”.
NOVATOS
Da novíssima geração, destaca-se o Trio Pouca Chinfra, que lançou o segundo CD em janeiro deste ano. De trio não tem nada, são 11 integrantes. O Pouca Chinfra faz um samba com forte tempero pop, lembra alguns dos novos grupos cariocas que pontificam na Lapa. Esse viés se explica pela formação de alguns dos membros do grupo. Filipino, por exemplo, também faz parte banda de rock The Playboys, enquanto Demóstenes, cavaquinista e principal compositor, foi da Bande Ciné. O Trio Pouca Chinfra é um dos poucos formados na Zona Sul, em Boa Viagem, mas se integrou bem à cena, tocando tanto com Karynna Spinelli quanto com a Gigantes do Samba: “Está todo mundo no mesmo barco. Com a união, todos saem ganhando. Estamos formando um público para o samba”, diz Filipino. Assim como as escolas, nos anos 1950, assimilaram traços da cultura regional, o Pouca Chinfra faz samba inspirado no trabalho de Adoniran Barbosa, ou com acompanhamento de sanfona.
Quem também faz samba com sotaque regional é Paulo Perdigão, da Mesa de Samba Autoral, uma das responsáveis pela atual movimentação local: “Antes, só se reproduzia o que se faz no Rio, e nós tivemos muito cuidado para não sermos um elemento a mais na cultura pernambucana. Nos meus sambas, procuro falar de Pernambuco, misturo o ritmo com forró ou maracatu; usamos alfaias, triângulos”. O conjunto foi criado há seis anos por Perdigão, Dona Selma do Samba, Ruy Ribeiro e Tadeu Júnior. O coletivo passou a ser mais conhecido a partir das rodas vespertinas do produtor Jair Pereira, no Clube Líbano, no Pina. Há quatro anos, ele promoveu eventos de samba, reunindo na programação ícones, tais como a Velha Guarda da Portela. Os músicos pernambucanos também se apresentavam no local, onde a Mesa de Samba Autoral era sempre destaque. “A Mesa de Samba Autoral tem bastante música para cantar só composições da gente, mas, no caso de um show muito longo, cantamos os clássicos”, comenta Perdigão.
Assim como congêneres de outros estados, o novo samba carioca é bem menos purista. É o caso do inovador Trio Moinho, que abdica de instrumentos tradicionais e é formado pela percussionsta Lan Lan (que foi da banda de Cássia Eller), o guitarrisa Toni Costa e a cantora (e atriz da Globo) Emanuelle Araújo, todos baianos. A faixa mais tocada do CD de estreia da Moinho, Hoje de noite (2008), é Carnaval, do pernambucano Sambê. Ele lançou o primeiro disco Insano, em 2006, ainda com o nome de San.b, e é da mesma geração do Pouca Chinfra. A amizade com a turma do Moinho fez Sambê se mudar para o Rio, em 2010. “Faço samba, mas sem me prender a convenções; pode ter alguma coisa de reggae, música regional, folclore”, afirma Sambê, acrescentando que sua mais recente empreitada é o Samba Massa, duo com Lan Lan, na base de voz, violão e percussão.
AUTORAL
Os vários impulsos isolados (incluindo aí o samba de latada, de Josildo Sá, com Paulo Moura, ou o Samba de São João, de Geraldo Maia) reforçaram em Pernambuco o gênero como um todo, admite o veterano Jorge Ribas, há quase 30 anos nas rodas de bamba, mas que só gravou o primeiro CD no final do ano passado, e crê na longevidade dessa onda de samba pernambucano: “Se a gente conseguir massificar o samba autoral, é possível que não seja uma moda passageira. Uma das características mais ricas do samba que se faz por aqui é que ele não repete fórmulas cariocas, nem vive de composições de autores clássicos como Cartola e Nelson Cavaquinho, embora esses gênios sejam cantados”.
Karynna Spinelli lançou o primeiro CD Morro de samba, no final de 2010. O detalhe importante do disco: todas as músicas levam a assinatura da artista, sozinha ou com parceiros. Ela já passou a exportar o samba pernambucano para os cariocas.
Jorge Ribas acha que o que se deve fazer, antes de tudo, é chegar ao povo: “O gosto do povo é incontrolável, precisamos chegar a ele”, diz Jorge Ribas, orgulhoso, que o samba autoral feito por ele e seus colegas no estado conseguiu ir aonde nunca foi antes: “O Marco Zero já não é um altar dos deuses, fizemos show lá, e ele, até uns tempos atrás, era inacessível para o samba de Pernambuco”.
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