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O Recife pelo olhar estrangeiro

TEXTO Paulo Souto Maior

01 de Fevereiro de 2011

Imagem Karina Freitas sobre foto de arquivo

No século 19, a capital da província de Pernambuco possuía três freguesias, cada uma com usos e características espaciais e construtivas próprias. É nos escritos de viajantes europeus que se podem colher registros e descrições físicas da cidade naquela época. Em grande maioria ingleses, eles estiveram no Recife por questões comerciais, mas também políticas — e alguns aqui aportaram em busca do nosso clima tropical, mais adequado à cura de enfermidades pulmonares.

Não esquecendo que muitos desses relatos estão carregados de preconceitos, valores morais e crenças religiosas, pode-se, ainda assim, deles extrair o reflexo íntimo de assuntos que não aparecem em documentos oficiais. Portanto, essas impressões particulares nos falam da intimidade de algumas cidades brasileiras. Dentre aqueles que viram e escreveram sobre o Recife no século 19, Koster, Tollenare, Henderson, Graham, Rugendas, Kinder, Darwin e Figueiredo nos deixaram relatos minuciosos.

Segundo esses viajantes, ao se aproximarem por mar do principal porto da região, avistava-se, ao norte, uma colina na qual se edificou a antiga capital, a cidade de Olinda, e, um pouco mais ao sul, o cabo de Santo Agostinho. Eram essas as principais referências desde o oceano. Antes do desembarque, já se percebia que a cidade do Recife era em grande parte insular, localizava-se justamente entre as desembocaduras dos rios Capibaribe e Beberibe; pois os limites das freguesias do Recife, de Santo Antônio e da Boa Vista estavam determinados por água.

Tal situação geográfica atribuiu a cada uma dessas áreas características espaciais e construtivas — e usos — que permaneceram durante grande parte daquele século. Alguns mapas da época fornecem um dado simples, mas de grande relevância para definir a cidade: esses três núcleos urbanos eram praticamente ilhas. Assim, os rios e canais foram os meios de transporte mais cômodos. Isso porque, com as péssimas estradas que existiam, e que as abundantes chuvas estragavam ainda mais, a navegação fluvial representava um meio seguro e rápido. É tão significativo este fato, que grande parte do açúcar, antes da introdução das estradas de ferro, chegava ao porto em canoas.

O porto estava localizado na freguesia do Recife. Nela, que podia ser considerada uma ilha, vivia e trabalhava a grande maioria daqueles que se dedicavam ao comércio, ou seja, que exportavam algodão cru e açúcar e importavam os mais variados gêneros da Europa. Como ali se concentrava a atividade mercantil da província, as construções particulares eram as mais altas da cidade, uma vez que as edificações serviam de residência e armazém. Naquela área, na primeira metade do século, podiam ser vistas várias construções com três, quatro e até cinco pavimentos, a maioria com paredes de alvenaria pintadas de cal. As ruas, à exceção da principal, a Rua da Cruz, eram estreitas e irregulares, mas quase todas estavam calçadas e tinham meios-fios azulados e pequenos blocos de granito. Lá também existiu um bar-café, onde se reuniam e faziam negócios os comerciantes da área, um pequeno mercado, o edifício da alfândega e vários depósitos. Do Recife se acedia a Santo Antônio através de duas pontes. Ali as ruas eram mais largas, embora muitas ainda estivessem por calçar. Existiam diversas construções térreas, seguidas por um número menor com dois e até três pavimentos. Com quatro, havia poucas. Segundo aqueles que visitaram a cidade antes de meados do século, essa era a parte mais atrativa. Seguramente tinham razão, pois, além de não estar tão aglomerada como o bairro do Recife, concentrava bom número de edifícios públicos.

No local, foram construídos o Teatro de Santa Isabel, o Mercado de São José e a casa onde vivia o presidente da província. Além dessas características, Santo Antônio apresentava uma grande diferença em relação ao Recife, pois seu comércio era basicamente varejista. Em resumo, essa área caracterizava-se pelo pequeno comércio e pela administração pública.

De Santo Antônio, também atravessando pontes, chegava-se à Boa Vista, onde ficava, como diziam alguns, “o continente”. No entanto, a Boa Vista também estava, curiosamente, cercada de água por quase todos os lados. Suas fronteiras eram delimitadas, ao norte, por um afluente do Beberibe e, a sudoeste, por um braço do Capibaribe e pelos manguezais que existiam onde hoje se situa o bairro de Santo Amaro e que a separavam de terra firme. Houve até quem se referisse à cidade como a Veneza Pernambucana, mas não seria de estranhar que, aos estrangeiros, isso mais parecesse uma anedota local.

Dos três núcleos originais, esse era o mais disperso, em que as ruas podiam ser mais largas, embora a maioria delas fossem sem pavimento. É que não havia restrições geográficas tão definidas, como se dava com as outras duas freguesias. Ali se construiriam, principalmente, residências que se permitiriam o luxo de possuir grandes jardins. Ao longo daquele século, a aristocracia rural do açúcar começava a se mudar para a capital. Na época, os senhores de engenho passavam a substituir a casa-grande por uma residência fixa na cidade, e a única freguesia que dispunha de grandes áreas era a da Boa Vista. Ainda que a maioria das casas fosse térrea, algumas podiam ser consideradas quase palacetes. Era o reflexo do modelo rural que se transferia e adaptava. 

PAULO SOUTO MAIOR, arquiteto, professor, mestre em Engenharia Civil e doutor em Construção, Restauração e Reabilitação Arquitetônica.

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