Além da linguagem crua e direta, é praticamente impossível manter-se indiferente à sucessão de cenas de agressão física, heresia, castração e até sexo explícito (projetadas em vídeo num ângulo de 360 graus, plateia adentro). “Eu queria fazer algo mais alternativo e verdadeiro sobre uma Manaus urbana, underground – e ocupar um teatro mais íntimo passou a ser fundamental para isso”, diz o diretor Denni Sales, consciente de que esse hiper-realismo a pouca distância nos faz pensar, como reféns em um espaço diminuto, que o inferno é mesmo aqui. Coisas para depois de meia-noite deve chegar ao Recife, na 1ª Mostra do Teatro Amazonense em Pernambuco, em maio.
Outra produção manauara, que também deve aportar nesse mesmo evento, traz como linguagem primordial a intimidade com seus espectadores. [OFF] INFERNO ou lave o céu para que eu morra, da Cia. Cacos de Teatro, é livremente inspirado n’A divina comédia, de Dante Alighieri. A encenação tem início ainda na rua, fora do espaço cênico, com direito à compra – paga pela produção da peça – de uma atitude agressiva por parte do público, incitado a jogar farinha de trigo em um intérprete-corpo-performer que transita entre a dança butoh, as artes visuais e o teatro físico. Permeada por sensações, a montagem resulta em um mergulho conceitual sobre nossos próprios “subterrâneos”, em que pesam a ganância, a ira e a gula como alguns dos sentimentos presentes.
“O processo de criação passou por muitas crises, tanto que construímos um banco de cenas para seis intérpretes, até entendermos que dessa forma não iríamos comunicar”, diz o ator e bailarino Francis Madson, principal artista em cena. Além de transformar-se num solo, o espetáculo, que fez sua estreia para 300 espectadores no Teatro Amazonas, passou a ser apresentado em espaços pequenos, com até 25 pagantes por sessão. “Hoje, não queremos essa espetacularização para um público de massa, mas, sim, uma comunicação melhor. Falar para poucas pessoas é sinônimo de retroalimentação, pois quem vê de perto amplia outras relações. Somos conscientes dessa escolha”, garante o diretor Dyego Monnzaho.
Coisas para depois de meia-noite é encenada num espaço
pequeno, apostando no hiper-realismo.
Foto: Denni Sales/Divulgação
ARTE E TECNOLOGIA
No outro extremo do país, em Porto Alegre, mais coletivos teatrais também vêm pensando em públicos mínimos para suas realizações. Fugindo do teatro convencional, a Cia. Espaço em Branco traz em seu repertório propostas cênicas performáticas que conjugam arte e tecnologia. Um dos trabalhos mais recentes, o solo Alice, propõe como “prato principal da cena”, numa experiência totalmentenonsense, o próprio corpo da atriz e diretora Sissi Venturin, servido como depositário de alguns dos personagens de Lewis Carroll em Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho. Os dizeres “Coma-me” e “Beba-me”, presentes no primeiro livro do autor inglês, serviram como mote para essa criação.
A aposta é numa linha narrativa mais onírica, cuja percepção sensorial faz com que os poucos espectadores presentes – originalmente, a peça foi concebida para apenas 12 pessoas, e hoje pode ser assistida por até 30, de todas as idades – atuem como cocriadores da obra, com participação ativa. “Na linguagem da performance art, o conteúdo é muito íntimo porque há uma persona que é extravasada. Assim, utilizando fragmentos de vários textos de Caroll, falo de alguma coisa minha através das personagens dele. Portanto, intimidade é algo essencial nesse trabalho”, revela Sissi Venturin, intérprete de um espetáculo cujo significado é um não à imaginação inerte. Por enquanto, a montagem circula apenas pelo Sul e Sudeste do país.
No Recife, até mesmo por possuir teatros bastante aconchegantes, como o Joaquim Cardozo, Capiba, Marco Camarotti ou Hermilo Borba Filho, uma parcela dessas encenações vem ocupando vários palcos da capital pernambucana. O mais recente deles é o galpão do Espaço Muda (Rua Capitão Lima, 280, Santo Amaro), inaugurado em janeiro de 2010 como um local múltiplo a receber espetáculos teatrais e de dança, em diálogo com filmes e vídeos, exposições, shows musicais, moda e bistrô. Das montagens que lá estiveram em cartaz, O acidente, realização do Visível Núcleo de Criação, traz em seu próprio contexto essa intimidade mais do que necessária. A obra do paulistano Bosco Brasil mostra o patético encontro de dois seres solitários numa festa de aniversário à qual mais ninguém aparece.
A peça [Off] Inferno teve estreia para 300 pessoas, mas atualmente recebe apenas 25 pagantes por sessão. Foto: Rafael Lins/Divulgação
“Quando me juntei à atriz Sandra Possani e ao diretor Fausto Filho, a montagem, até então, independia do espaço. Só durante o processo de criação chegamos à conclusão de que o texto necessitava ser dito de forma mais baixa e numa interpretação minimalista”, afirma o ator e produtor Kleber Lourenço. Concebida para até 35 espectadores por sessão, a peça cumpriu temporada às quintas e sextas-feiras no Espaço Muda, de agosto a outubro de 2010, com apresentações extras no Teatro Capiba e nas cidades mineiras de Belo Horizonte e Itaúna. “A necessidade de termos um público reduzido tem a ver com a maneira como o espetáculo toca cada espectador. É uma interpretação que não pode ser eloquente. Toda a emoção precisa ser percebida pelo olhar do público e não projetada pelo ator. Por isso os espectadores estão tão próximos, um pouco dentro da cenografia em semiarena, o que faz com que vejam, inclusive, de ângulos distintos”, garante Lourenço. O acidente deve voltar à cena recifense ainda neste primeiro semestre.
BILHETERIA PEQUENA
Se cada vez mais coletivos em todo o país estão primando por essa relação tão íntima com plateias diminutas, em contraponto à necessidade de um teatro de multidões, como manter-se financeiramente com uma bilheteria tão pequena? Entre aqueles que conquistaram algum tipo de apoio em editais, ou investiram nesse projeto com verba própria, o ator Kleber Lourenço (que representa o segundo caso) diz que ainda é possível produzir dessa forma, “basta ter planejamento, acordo entre os profissionais envolvidos e pensar nas diversas maneiras de se vender o espetáculo, mesmo ele estando em cartaz”.
Consciente de que encarar tal desafio é um exemplo de maturidade artística, complementa: “O mais legal é que, nesse tipo de trabalho, tão íntimo, você volta ao exercício de que teatro é verdade acima de tudo, independentemente da estética. E, assim, diminuindo as ansiedades, sinto-me feliz por perceber que as poucas pessoas que vêm me assistir são tocadas por aquelas atmosferas e isso vai reverberar, sim. O sucesso para mim, nesse trabalho, está nisso”, opina. É no que todos, intimamente, querem acreditar.
LEIDSON FERRAZ, ator, jornalista e pesquisador teatral.