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Animais nascidos de troncos e galhos

José Bezerra conta que ergueu seu museu mágico após uma revelação em um sonho e de ter vivido como andarilho pelo Sertão. Ele se considera um homem rico que vive da própria criação artística

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS LÉO CALDAS

01 de Fevereiro de 2011

Foto Léo Caldas

O artista plástico José Bezerra tem um repertório de histórias que deixam o visitante embasbacado, encafifado. Jura já ter avistado – bem em frente à sua casa-ateliê, na estrada que margeia o Parque Nacional do Catimbau – o Motoqueiro sem Cabeça, figura lendária, temida por vários moradores do lugarejo perdido no meio do sertão pernambucano. “Quando ele (o motoqueiro) vem, a gente só vê o farolzão da moto e aquele rastro de fogo. É coisa rápida, depois some!”, conta Bezerra, sem nenhuma cerimônia, como se estivesse comentando sobre um corriqueiro encontro com alguém das redondezas.

O Motoqueiro não é a única entidade a fazer parte desse mundo mágico, com um quê de realismo fantástico, impregnado na pessoa e na obra do artista, que habita a zona rural da pequena vila do Vale do Catimbau, distrito de Buíque, distante 280 km do Recife. Nas suas jornadas pelo mato, garante, ainda, ter se deparado com personagens de um cortejo-fantasma, que aparecem e desaparecem na frente dos passantes num piscar de olhos, e com várias outras entidades lendárias do imaginário nordestino, a exemplo do fogo corredor e dos caiporas.

Lendo esses relatos, de longe, na cidade, qualquer um vai duvidar da veracidade e lucidez do misto de artista e visionário. Mas frente a frente, olhos nos olhos de José Bezerra, instalado no seu ateliê batizado de Jardim das Esculturas, sob um céu de azul deslumbrante e um sol de rachar coquinho, que pontua toda a extensão do Catimbau, qualquer cidadão, por um segundo, pode se dar ao luxo de pensar que, diante de tanta beleza, de tanta coisa que a vida não explica, há fatos que devem apenas ser aceitos...


José Bezerra utiliza ferramentas simples como facão, grosa,
formão e serrote

SAGA FICCIONAL
Afinal, a própria trajetória de Zé Bezerra, 58 anos, é um desses enigmas. Destino, golpe de sorte ou magia divina? Certamente, algo súbito, pois, caso contrário, como explicar que um cidadão analfabeto, desvalido de posses ou amigos influentes, sem profissão, sem formação e, ao que tudo indicava, com um futuro anódino, tornou-se, de repente, aos 40 anos, um reconhecido artista plástico, dono de uma indiscutível originalidade, que o faz, atualmente, ser convidado por importantes galerias de arte do Nordeste e do Sudeste do país, além de ter inúmeros trabalhos enviados para o exterior? “Era pobre, virei rico. Era ninguém, virei um artista”, gaba-se o pequeno e agitado homem, que cativa com sua fala fácil.

A vida de José Bezerra Santos Filho, permite muitos elos com a ficção. É uma paródia às aventuras armorialistas de João Grilo e Chicó, do Auto da Compadecida, ou do lendário Pedro Malazartes. Um destino digno dos mais nobres e valentes heróis sertanejos, capazes de driblar as agruras e rudeza da dura existência local, e serem felizes. Natural de Buíque, filho de um barbeiro e de uma costureira pobres, jamais foi para a escola, e seguiria a vida comum de agricultor, se aos 17 anos não cansasse da mesmice do interior e optasse por ser um andarilho na vida. “Queria ganhar o mundo!”, conta.

Andou um bocado pelas cidades sertanejas, ora assentando trilhos de trem, ora distribuindo leite, ora fazendo biscates. Passou fome, comeu ração de porcos, lixo, sofreu um acidente que o deixou meses na cama, foi preso, amou e se juntou com muitas mulheres, teve três filhos. “Quando criança nunca tive carinho, apanhava muito, meus pais eram ignorantes, rudes. Adulto, morei na rua, passei muito aperreio, muita fome”, lembra Bezerra, que também caiu nos “braços da cachaça”, e passava 24 horas bebendo, até “beijar o chão”. E quando tudo parecia estar perdido, como estivera para centenas de outros sertanejos, teve um sonho, uma grande revelação.


O sítio do artista funciona como galeria e chama a atenção de
quem passa pela região

“No sonho, um velho dizia que eu tinha que morar no Catimbau, no local onde eu encontraria três pedras amontoadas, (onde hoje habita, ele conta que encontrou essas três marcas) e ser artista, trabalhar com os elementos da terra, com os troncos de madeira da mata”, recorda José Bezerra, que, assim que acordou, resolveu cumprir a profecia.“Fui procurando os galhos. Na primeira investigada encontrei uma preguiça, depois um gambá, depois um tamanduá. Aí foi só completar os detalhes, colocar um olho, uma mão, uma boca. A natureza me dá e eu aperfeiçoo o que recebo”, ensina Bezerra, que é comparado por especialistas ao polonês Frans Krajcberg, artista cujo trabalho se destaca pelo reaproveitamento de elementos colhidos da natureza, para denunciar agressões ao meio-ambiente.

As madeiras naturais são transformadas em figuras de animais, com a ajuda de ferramentas simples como facão, grosa, formão e serrote, formando uma intrigante galeria, que fica exposta no quintal da casa onde habita, e que pode ser apreciada por todos que passam pelo local. Esse seu exótico arsenal foi admirado pelo diretor, dramaturgo e autor Zé Celso Martinez, que, como muitos, durante viagem ao Catimbau, se encantou com o trabalho de Bezerra, e convidou outras pessoas para conferirem o rico universo do artista. No pacote, vieram os jornalistas, entre eles um que entrevistou o sertanejo para uma revista do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que foi vista por Vilma Eid, dona da Galeria Estação, em São Paulo – para quem atualmente Bezerra trabalha com exclusividade. Vilma conta que, logo depois de ver as fotos e ler a reportagem, rumou para o Catimbau, somente para conversar com o artista, de quem se tornou agente.

A rotina de trabalho não obedece a preceitos. Continua intuitiva, alimentada pelas buscas e achados na mata. “Dependendo do dia, posso fazer peças de mais de dois metros, ou uma miniatura. A inspiração vem sem pensar: aparece na hora.”O artista afirma que, depois da fama, conquistada dificilmente consegue manter um grande estoque de peças no seu quintal.


Segundo o artista, é o formato dos galhos e troncos, encontrados
na mata, que lhe serve de inspiração

INDUMENTÁRIA
Suas únicas excentricidades, adquiridas após descobrir que a sua razão de viver era a arte, são os adereços e vestimentas que o acompanham nas exposições e contatos com o público, que tornam sua aparição uma verdadeira performance.

“Depois do sonho e da visão, tive também umas intuições de como me apresentar”, conta Bezerra, que, há 12 anos, construiu o primeiro item da exótica indumentária que veste nas apresentações em público: um chapéu com fibra de palha e cabaça. O berimbau, com duas panelas de alumínio, manejado por um cabo de um garfo e por uma tabica de madeira, veio em seguida. O colete, estilizado, é mais um complemento. Para justificar tanta imponência, criou, também, toadas e forrós próprios. “Se eu me alegro com elas, todo mundo se anima!”, diz o artista, que imita o som de animais e aves, e que afirma: “Eu quero mostrar que tenho talento, que é vigoroso meu talento!”, enfatiza.

O reconhecimento já é uma realidade. O crítico Rodrigo Naves, por exemplo, descreve o trabalho de Bezerra com as seguintes palavras. “Confinar seu trabalho ao gueto do popular significaria apenas pacificá-lo e reduzi-lo. José Bezerra não sabe sequer ler, mas há mais argúcia e clarividência em seu trabalho do que no daqueles, e são tantos, que confundem arte com erudição.” A profecia ditada no sonho, ao que parece, vem plenamente se cumprindo. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
LÉO CALDAS, fotógrafo.

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