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A história que está sob nossos passos

De influência ibérica, as calçadas do Recife vêm acompanhando, desde o século 19, o desenvolvimento paisagístico e socioecônomico da cidade

TEXTO RAQUEL MONTEATH
FOTOS TIAGO LUBAMBO

01 de Fevereiro de 2011

Foto Tiago Lubambo

Rosáceas, flor de lótus, botões de tulipa e folhas de acanto. Não, você não está diante de um jardim, e, sim, em plena urbe, movimentada e complexa, com todos os elementos que uma metrópole pode apresentar. A atmosfera fitomórfica em questão é encontrada em um componente urbano pouco (re)conhecido por moradores e turistas que transitam pelas ruas do Recife: suas calçadas. Em nosso movimento diário de ir e vir, que realizamos quase de forma automática, é difícil perceber a beleza por trás, ou, mais precisamente, abaixo dos nossos pés, quando passamos apressados por diversos edifícios e pessoas até chegarmos ao destino da vez.

Sobre as calçadas, a infraestrutura e os espaços de convivência de uma cidade compartilham os mesmos caminhos. Resistir talvez seja o verbo que melhor caracterize a condição delas, que guardam tantas histórias entre suas pedras quanto qualquer outra manifestação arquitetônica de grande valor. Uma a uma, elas constituem o espaço público, esbanjando de forma bastante própria a relação entre o aspecto social e o urbano-paisagístico de uma cidade. “O valor de uma cidade se mede, essencialmente, pela qualidade de sua rede de espaços públicos. A rua é o elemento primário dessa rede, e as condições para a circulação das pessoas revelam, em parte, as características sociais de uma sociedade”, pontua a arquiteta e pesquisadora Amélia Reynaldo.


A composição presente na avenida Rio Branco lembra a forma de um ponto de cruz, que remete ao estilo art nouveau

O espaço público tem sido referência desde o século 19, quando o Recife abriu seus portos, atingindo importância nacional no mercado algodoeiro. O aumento na demanda de mercadorias, as condições de moradia e o crescimento populacional nos arredores do porto repercutiram numa série de transformações para a cidade, inclusive de revitalização do Bairro do Recife, que sempre fora repleto de ruas estreitas e de casas conjugadas. Com as diversas reformas do centro, incluindo demolições de estruturas como arcos, pilares e pisos de igrejas (como foi o caso da Igreja do Corpo Santo, destruída em 1914), muitas pedras foram reaproveitadas na confecção de meio-fios no calçamento do bairro. “Tiveram que pagar uma indenização ao bispo pela demolição da igreja, porque era preciso abrir as três avenidas principais (Rio Branco, Marquês de Olinda e Alfredo Lisboa) para melhor circulação das mercadorias e do fluxo de pessoas. Foi basicamente uma decisão tecnológica, pois se vivia o processo de modernização do porto”, afirma o arquiteto Geraldo Santana.


Blocos intertravados de cimento foram utilizados
em substituição às pedras portuguesas, sob o
argumento de melhoria do acesso à área comercial

Com a abertura dessas três avenidas, a criação de ferrovias, o melhoramento nas condições de saneamento e os primeiros calçamentos das ruas, o Recife passava definitivamente por uma “fase de modernização”, e as calçadas foram destinadas a passeios públicos. “Em toda cidade, calçar os espaços não construídos e margeados de construções foi tanto um ato de modernidade como também disciplinador da circulação dos veículos. As calçadas delimitadas pelo meio-fio e acima do leito carroçável marcam a diferenciação entre os espaços ditos ‘vias públicas’, ou seja, garantem a segurança do pedestre”, pontua Amélia.

PRETO NO BRANCO
O contraste das duas cores é característica singular dessas calçadas, compostas por pedras portuguesas que vieram em carregamentos de navios. Os desenhos em basalto (parte preta) e calcário (parte branca) são aplicados em sequências, formando um padrão que passa a ideia de fluidez. “Essas calçadas de pedras brancas e pretas, bastante encontradas em Lisboa, são uma transposição europeia. A combinação de cores parece ter sido reconhecida pela cultura urbanística brasileira como um padrão local de revestimento”, explica a arquiteta. Rapidamente, essa estrutura foi espalhada pelos espaços destinados à circulação de pedestres das principais cidades brasileiras, como no caso do famoso calçadão da avenida Atlântica, em Copacabana, motivo português que fora adaptado e agigantado na década de 1970 pelo paisagista Burle Marx.


Variações do motivo floral fazem parte do universo eclético encontrado
no Bairro do Recife

O estilo encontrado nas calçadas do bairro do Recife é o eclético. Seus moldes vazados imprimiram em suas ruas a diversidade da arte decorativa, embelezando fachadas de edifícios importantes e compondo os detalhes que pertencem ao patrimônio artístico da cidade. Apesar da forte influência ibérica, os desenhos prezam por certa propriedade no traçado. Isso se deve a um concurso realizado pela Prefeitura do Recife, em 1969, no qual os projetos dos arquitetos cariocas H. J. Cole e Wit-Olaf Prochnik e o do pernambucano Geraldo Santana foram aprovados e implantados nas ruas da cidade. “Numa pesquisa sobre os desenhos feitos em Portugal, identifiquei que os ornamentos eram, em sua maioria, oriundos do elemento fitomórfico, compostos por curvas de 50 cm de raio, que se seccionam, ora formando pontas de folhas, ora de pétalas”, comenta o arquiteto, que exerceu, durante 30 anos, a atividade de técnico da Agência de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco.


Desenho de Geraldo Santana, na Praça Oswaldo Cruz, datado dos anos 1970, é recorrente nos espaços públicos da cidade

Munido desses dois elementos, o projeto de Geraldo Santana foi composto por 15 motivos florais, sendo utilizados como base estética aplicada no Recife ao longo desses 42 anos. “No concurso, utilizei a flor-de-lis enquanto matriz por ser uma flor tríplice, ou seja, seu desenho possibilita desdobramentos centrais e em ambos os lados”, completa. Essa diversidade foi aplicada por paisagistas e arquitetos em praças da cidade, como a Osvaldo Cruz, a de Casa Forte, e a do Arsenal da Marinha. Nessa última, por exemplo, o desenho foi agigantado, resultando num modo mais compatível com o tamanho médio do passo das pessoas, que, na concepção do arquiteto, andariam pelas calçadas com um sentido lúdico, como se caminhassem brincando. “Os mosaicos, à semelhança dos tabuleiros de xadrez, e de alguns jogos infantis riscados no chão, seriam as matrizes ancestrais das nossas calçadas de pedra portuguesa. Utilizei-os, nesse caso, para simplificar a execução da obra, visando tanto garantir a padronização das calçadas, como também evitar erros grosseiros nos desenhos, porque, no que deforma, nega um dos conceitos básicos em comunicação visual, que é o de zelar pela indeformabilidade do traço”, afirma.


Composta por três folhas de acanto, o motivo é uma
composição da flor-de-lis

A principal dificuldade enfrentada por ele foi a adaptação do traço aos solos recifenses. O mau detalhamento do projeto de alguns logradouros, feito por desenhistas e empreiteiros da prefeitura, deformaram certos desenhos na sua essência geométrica. “O caso mais grave ocorreu nos anos 1980, nos passeios do entorno do Museu da Cidade, no Forte de Cinco Pontas, pela grosseira introdução de um segmento reto, rompendo o princípio geométrico regulador”, aponta o arquiteto. Como as ruas fazem curvas irregulares, em certas praças, só foi possível adaptar o desenho “quebrando” um pouco seu traçado na hora da aplicação. “Os desenhos, numa malha de quadrado e hexágono, não sofreriam grandes alterações, mas, na hora da execução, o operário é orientado a adaptar, ajustar, assim como as costureiras fazem com o tecido”, compara Geraldo.


A sequência, localizada à avenida Marquês de Olinda, compõe uma forma mandalística

MÁ CONSERVAÇÃO
“A calçada é o espaço da riqueza e da miséria. Parece que elas ocupam uma suposta invisibilidade ou irrelevância, cuja materialidade só é parcialmente percebida e recuperada quando nela se tropeça”, opina a professora, doutora em Geografia, Edvânia Torres, da Universidade Federal de Pernambuco. Sobre esse aspecto, alguns erros e descasos foram cometidos tanto na manutenção quanto na restauração dos passeios públicos, comprometendo a história e a estética das pedras portuguesas. Os blocos intertravados de cimento são a opção comumente utilizada e econômica para remendos – com exceção de situações em que fenômenos naturais tenham debilitado a via pública, alterações de nivelamento e da manutenção de rampas nos cruzamentos. A Lei Municipal 16.890, de 2003, indica que são os proprietários e ocupantes dos estabelecimentos que devem fazer a manutenção de toda e qualquer alteração nas calçadas, o que pode ser considerado uma medida insuficiente quando se trata de um bem comum a todos do município. “As calçadas são como corredores de fluxos de riquezas que movem os interesses do capital urbano, de forma cada vez mais incisiva. O desafio é discutir formas de corresponsabilidade, pois a calçada não é de ninguém, especificamente, mas, sim, interesse de todos, mediado pelo poder do estado”, opina a geógrafa.


Na fachada do cinema São Luiz, a calçada dialoga com o
projeto arquitetônico moderno do espaço cultural

A pretexto de atender certas exigências de acessibilidade, um dos exemplos de descaso com esse bem público aconteceu na gestão do prefeito João Paulo Lima, em que oito quilômetros de pedras portuguesas legítimas do calçadão da praia de Boa Viagem foram trocadas.“Acho que há um lamentável descuido do poder público tanto na conservação, manutenção e preservação das calçadas antigas do Recife como na divulgação de sua importância, que, em suma, é um dos mecanismos de preservação. A grande maioria da população foi contra a substituição da calçada de pedras portuguesas da Avenida Boa Viagem: guardando as devidas proporções, as velas das jangadas deslizando sobre o mar estavam para o Recife assim como as ondas da calçada de Copacabana estão para o Rio de Janeiro”, defende Amélia Reynaldo. 

RAQUEL MONTEATH, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
TIAGO LUBAMBO, fotógrafo.

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