Duas questões se destacam do conjunto de materiais reunidos e elaborados por Benjamin a partir de suas pesquisas na Biblioteca Nacional de Paris: a investigação do desenvolvimento técnico e social em torno das galerias parisienses, entendidas por ele como centros de consumo responsáveis por terem colocado, pela primeira vez, a mercadoria como objeto de destaque da paisagem urbana; e o desenvolvimento de uma historiografia de imagens, ou seja, o emprego de técnicas vanguardistas de montagem e colagem do material histórico de modo a colocá-lo numa constelação com o presente, produzindo assim uma intensa relação entre passado e presente, capaz de iluminar as duas épocas. Benjamin não pretendia apenas se reportar aos eventos do tempo decorrido, mas examiná-los do ponto de vista de sua atualidade para o momento presente.
Galerias como esta serviram de fontes de pesquisas de Benjamim sobre o
século 19 parisiense, reunidas no livro Passagens. Foto: Reprodução
Essa forte preocupação com a atualidade do passado não se fundamenta de modo algum no mero esforço de conservá-lo, muito menos no pretenso valor da “tradição”, da “cultura” ou dos “bens culturais”, ou seja, porque o passado ou a tradição teriam um valor por si mesmos. A preocupação de Benjamin se orienta, muito mais, pelo esforço de estabelecer uma relação viva e crítica com o passado num contexto em que a relação entre passado e presente não é mais regulada pela tradição. No momento histórico – a modernidade – em que os laços que nos unem à experiência passada se enfraquecem, aumentando a descontinuidade entre as gerações, torna-se uma necessidade do tempo presente elaborar formas de relação com o passado que não se guiem por sua mera conservação, como valor desconectado das exigências do tempo presente. Pensar sobre essas questões implica a retomada do sentido forte dado por Benjamin ao conceito de atualidade.
Pensar essa questão exige ir além do exame de mais um tema no interior da sua obra. Ela também diz respeito à maneira como podemos ler seu trabalho hoje. Pouco conhecido em vida, Benjamin foi redescoberto pelo movimento estudantil nos anos 1960 e, desde então, seus textos têm atraído cada vez mais a atenção, sendo objeto de traduções, estudos especializados e congressos acadêmicos. Desde as primeiras publicações no pós-guerra, por iniciativa de seus amigos Theodor W. Adorno e Gershom Scholem, a recepção de Benjamin é objeto de disputas, as quais dizem respeito não só à interpretação dos textos, mas também à organização dos mesmos em coletâneas, obras completas e edições críticas. O ano de 2010 marcou uma nova etapa dessa recepção: o aniversário de 70 anos da morte de Benjamin foi celebrado com a entrada de seus textos em domínio público, fato que dará margem a uma nova onda de publicações e interpretações de sua obra. Esses dados salientam elementos trabalhados pelo próprio Benjamin: se ele é um clássico, um autor incorporado ao que podemos chamar de tradição ou de cultura; se sua importância está fora de questão, ele também pode ser objeto de uma disputa no presente. Entender os termos dessa disputa implica explicitar uma série de variáveis que compõem nossa relação com o passado. Em outros termos, ela diz respeito à possibilidade de avaliar a atualidade do passado em função de uma reflexão a respeito do próprio presente.
Se Benjamin refletiu a respeito de conceitos associados à relação com o passado – cultura, tradição, experiência, transmissão –, ele também estabeleceu uma diferenciação entre dois modos de relacionar-se com o passado: a presentificação e uma noção forte de atualidade. O primeiro conceito se traduz numa concepção mais trivial de atualidade. Ele parte de uma imagem acrítica do presente para buscar no passado algo que se assemelha à época presente. Em vez de refletir sobre as diferenças entre passado e presente, ou seja, sobre a distância histórica que transforma o passado em algo distinto do presente, tal conceito sugere uma identificação do presente com o passado.
O historiador em busca da compreensão do passado deveria assim esquecer-se das ideias e preconceitos de sua época, de sua maneira histórica de entender a realidade, para tentar trazer à tona o passado tal como ele foi. No último texto de Benjamin, as conhecidas teses Sobre o conceito de história, essa forma de relacionar-se com o passado caracteriza o trabalho do historiador historicista. Como ele abstrai os interesses de sua época com o intuito de melhor conhecer o passado, também deixa de refletir sobre as formas de dominação social presentes em toda relação com a cultura e com a tradição. Seu método – a identificação, a empatia – reverte-se, então, em um compromisso com os vencedores. Com quem, pergunta Benjamin, o investigador historicista estabelece uma relação de empatia? A resposta é inequívoca: com o vencedor.
Contra esse modo de relação com o passado, Benjamin formula uma ideia forte de atualidade, a qual caracterizaria o trabalho do historiador educado pelo materialismo histórico. Esse não coloca o presente entre parênteses. Ao contrário, para ele a reflexão crítica sobre o próprio presente é condição para toda relação com o passado. Ele parte da ideia de que o passado é objeto de um processo histórico de transmissão da cultura e que esse processo é um objeto de disputa social no presente. Esquecer isso implica compactuar com o modo de escrever a história estabelecido pelas classes sociais dominantes. É nesse contexto que ele lembra a necessidade de adotar uma postura crítica perante as narrativas dominantes, de modo que a tradição não seja vista como o cânone das grandes obras e dos grandes feitos, mas como o processo conflituoso que subjugou e silenciou muitos dos que nele tomaram parte.
LUCIANO GATTI, professor do Departamento de Filosofia da Unifesp.