O exercício literário e o apreço pela palavra tornavam, em certa medida, o confinamento menos penoso para o escritor. Optando pelo diário, Lima Barreto dava passos na direção do autoconhecimento, a partir da prática solitária de notificação da rotina instituída pelo gênero autobiográfico. No contexto de degradação explicitado, o diário incorpora uma função psicoterapêutica, pois, como aponta o especialista no gênero, Alain Girard, nessa documentação o indivíduo recupera a consistência da identidade, atacada por acontecimentos externos.
No entanto, Diário do hospício está muito além da busca pelo conforto pessoal. A obra se apresenta híbrida, incorporando não só o “eu” atormentado e deprimido nos seus últimos anos de vida, mas também o analítico cronista que ele nunca deixou de ser e o leitor de formação e erudição, a despeito das dificuldades implicadas pela sua classe social e sua mestiçagem.
Enquanto esteve internado no Hospital dos Alienados, Lima foi frequentador assíduo da biblioteca do hospício. A possibilidade de escapar dos estorvos através da literatura residia não apenas no ato de escrever, mas na prática do duplo criação/fruição de textos literários. Por isso, menciona algumas vezes a leitura de Plutarco e tece observações sobre a obra dele. O lado cronista, por sua vez, está presente em todo o diário, enfocando principalmente a ineficiência dos tratamentos para psicóticos, mas pontuando também as contradições morais da sociedade carioca que lhe chegavam através dos jornais.
Nova edição da obra de Lima conta com fotografias da época e
textos de outros autores relativos ao tema. Foto: Reprodução
A multiplicidade de papéis assumida pelo escritor confere peculiaridades à publicação, que extrapola o formato tradicional do gênero diário. O tratamento do tempo é o elemento mais evidentemente desconstruído, pois os relatos nem sempre se apresentam referenciados por data, como demanda o gênero, podendo às vezes estar implícito (Dia de São Sebastião) ou completamente velado. Isto também se deve às diferentes nuances do registro, que ora é autobiográfico, ora adquire tom de crônica e ora incorpora elementos da ficção.
TESTEMUNHO E FICÇÃO
“ Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido, mas devido à oclusão muda do meu orgulho intelectual.” A confissão lamentosa presente no diário é, no entanto, fictícia. Sabe-se que Lima Barreto nunca se casou. Da mesma forma, o autor apresenta a própria mãe como portadora de transtornos mentais (embora ela tenha falecido à época da infância dele), e refere-se a um filho doente, também irreal.
Essas experimentações ficcionais desenvolvidas no espaço do relato íntimo culminaram na publicação do Cemitério dos vivos, romance que oferece continuidade de sentido à produção do autor naquele período, visto que as duas obras dialogam incansavelmente. Assumindo o caráter de romance autobiográfico, o livro apresenta o protagonista Vicente Mascarenhas, extensão fictícia do próprio Lima Barreto e com muitas características convergentes. Entre elas, estão a origem humilde, a ambição da formação intelectual, a atividade no funcionalismo público convivendo com o exercício do jornalismo e da literatura, as dificuldades financeiras, o alcoolismo acompanhado de delírios e, por fim, as internações psiquiátricas.
O Cemitério dos vivos parece mesmo uma consequência inevitável da vivência de Lima Barreto que, ao seguir da memória ao romance, leva para este trechos intactos do seu diário.
O ceticismo de Lima Barreto em relação aos procedimentos da psiquiatria não foi leviano. Ainda hoje não há um diagnóstico de cura para os psicóticos, e os tratamentos são questionáveis. O desinteresse das instituições ante o drama individual de cada paciente, tratando os casos de distúrbios de forma generalista, continua sendo regra, e o cronista anteviu as falhas do sistema manicomial.
A presente edição dos dois textos amplia a reflexão sobre a história social da loucura, através das notas organizadas por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Os comentários contextualizam os relatos de Lima Barreto de acordo com informações divulgadas nos jornais da época, além de identificarem precisamente os psiquiatras citados e discriminar os seus posicionamentos médicos. Soma-se ainda ao conjunto o apêndice, composto por crônicas de Machado de Assis, Raul Pompéia e Olavo Bilac sobre o hospício e os valores presentes nessa instituição.
GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.