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Lima Barreto: Testemunho direto de um estado de opressão

Ganham edição em volume único o autobiográfico 'Diário do hospício' e o inacabado 'Cemitério dos vivos', inspirados na experiência pessoal do escritor carioca

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Dezembro de 2010

Lima Barreto

Lima Barreto

Imagem Karina Freitas

Quando descreveu minuciosamente o interior do Hospital Nacional dos Alienados, no quinto capítulo de Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado no formato de folhetim em 1911, Lima Barreto não poderia imaginar que ele próprio vivenciaria, em dois momentos, a experiência da internação naquele lugar. A primeira ocorreria três anos depois, entre os meses de agosto e outubro de 1914. Mas é de sua segunda passagem pelo hospício que nos chegam registros de memória e declarações de uma crise íntima. Ao retornar ao manicômio na noite de Natal de 1919, acometido por novos delírios, consequentes do alcoolismo, ele iniciou a escritura de um diário sobre o universo psicótico onde fora inserido, não só relatando o seu dia a dia, mas analisando seus personagens – alienistas e alienados – e sua lógica social, sob um olhar de aguda lucidez.

Esse repertório de lembranças, intitulado Diário do hospício, ganhou edição da Cosac Naify, juntamente com o romance inacabado Cemitério dos vivos, inspirado na experiência pessoal e interrompido devido ao falecimento do autor. Ainda no prefácio do crítico Alfredo Bosi, atentamos à particularidade desse livro. “São raras as obras que possam valer como testemunhos diretos e coerentes de um estado de opressão e humilhação”, comenta. Para o relançamento, os organizadores Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura consultaram os manuscritos guardados na Biblioteca Nacional, além de terem revisto as edições anteriores, inclusive a primeira delas, organizada pelo biógrafo de Lima Barreto, Francisco Assis Barbosa, em 1953.

Embora estivesse destroçado emocionalmente pela falta de reconhecimento público à sua obra, a frustração do autor não embota formalmente os escritos, em nada obscuros ou herméticos, como, nesse caso, seria esperado. Ao contrário, as ideias, descrições e impressões são claras e densas. Agrega-se a elas a constante autocrítica do escritor perante o seu vício e as suas escolhas. A reavaliação do passado torna-se mais dolorosa quando confronta ambições e limitações: “Sonhei Spinoza, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei o Dostoiévski, mas me faltou sua névoa”.

Referindo-se ao hospício como “meio hospital, meio prisão”, no romance protagonizado pelo quixotesco Policarpo Quaresma, Lima Barreto já demonstrava repúdio à instituição, associada, no seu imaginário, à falta de liberdade e solidão. Não se enganou. Enquanto esteve internado, o homem do meio literário e jornalístico recebeu poucas visitas, o que acabou colaborando para intensificar o seu drama e tornar as suas contradições mais evidentes. No tocante à família, por exemplo, ora compreendia a decisão do internamento, devido ao incômodo que estava gerando a todos, ora censurava-os e julgava-os simplistas na resolução encontrada para o seu quadro de alcoolismo.

FUGA DA CRISE
O exercício literário e o apreço pela palavra tornavam, em certa medida, o confinamento menos penoso para o escritor. Optando pelo diário, Lima Barreto dava passos na direção do autoconhecimento, a partir da prática solitária de notificação da rotina instituída pelo gênero autobiográfico. No contexto de degradação explicitado, o diário incorpora uma função psicoterapêutica, pois, como aponta o especialista no gênero, Alain Girard, nessa documentação o indivíduo recupera a consistência da identidade, atacada por acontecimentos externos.

No entanto, Diário do hospício está muito além da busca pelo conforto pessoal. A obra se apresenta híbrida, incorporando não só o “eu” atormentado e deprimido nos seus últimos anos de vida, mas também o analítico cronista que ele nunca deixou de ser e o leitor de formação e erudição, a despeito das dificuldades implicadas pela sua classe social e sua mestiçagem.

Enquanto esteve internado no Hospital dos Alienados, Lima foi frequentador assíduo da biblioteca do hospício. A possibilidade de escapar dos estorvos através da literatura residia não apenas no ato de escrever, mas na prática do duplo criação/fruição de textos literários. Por isso, menciona algumas vezes a leitura de Plutarco e tece observações sobre a obra dele. O lado cronista, por sua vez, está presente em todo o diário, enfocando principalmente a ineficiência dos tratamentos para psicóticos, mas pontuando também as contradições morais da sociedade carioca que lhe chegavam através dos jornais.


Nova edição da obra de Lima conta com fotografias da época e
textos de outros autores relativos ao tema. Foto: Reprodução

A multiplicidade de papéis assumida pelo escritor confere peculiaridades à publicação, que extrapola o formato tradicional do gênero diário. O tratamento do tempo é o elemento mais evidentemente desconstruído, pois os relatos nem sempre se apresentam referenciados por data, como demanda o gênero, podendo às vezes estar implícito (Dia de São Sebastião) ou completamente velado. Isto também se deve às diferentes nuances do registro, que ora é autobiográfico, ora adquire tom de crônica e ora incorpora elementos da ficção.

TESTEMUNHO E FICÇÃO
“ Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido, mas devido à oclusão muda do meu orgulho intelectual.” A confissão lamentosa presente no diário é, no entanto, fictícia. Sabe-se que Lima Barreto nunca se casou. Da mesma forma, o autor apresenta a própria mãe como portadora de transtornos mentais (embora ela tenha falecido à época da infância dele), e refere-se a um filho doente, também irreal.

Essas experimentações ficcionais desenvolvidas no espaço do relato íntimo culminaram na publicação do Cemitério dos vivos, romance que oferece continuidade de sentido à produção do autor naquele período, visto que as duas obras dialogam incansavelmente. Assumindo o caráter de romance autobiográfico, o livro apresenta o protagonista Vicente Mascarenhas, extensão fictícia do próprio Lima Barreto e com muitas características convergentes. Entre elas, estão a origem humilde, a ambição da formação intelectual, a atividade no funcionalismo público convivendo com o exercício do jornalismo e da literatura, as dificuldades financeiras, o alcoolismo acompanhado de delírios e, por fim, as internações psiquiátricas.

Cemitério dos vivos parece mesmo uma consequência inevitável da vivência de Lima Barreto que, ao seguir da memória ao romance, leva para este trechos intactos do seu diário.

O ceticismo de Lima Barreto em relação aos procedimentos da psiquiatria não foi leviano. Ainda hoje não há um diagnóstico de cura para os psicóticos, e os tratamentos são questionáveis. O desinteresse das instituições ante o drama individual de cada paciente, tratando os casos de distúrbios de forma generalista, continua sendo regra, e o cronista anteviu as falhas do sistema manicomial.

A presente edição dos dois textos amplia a reflexão sobre a história social da loucura, através das notas organizadas por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Os comentários contextualizam os relatos de Lima Barreto de acordo com informações divulgadas nos jornais da época, além de identificarem precisamente os psiquiatras citados e discriminar os seus posicionamentos médicos. Soma-se ainda ao conjunto o apêndice, composto por crônicas de Machado de Assis, Raul Pompéia e Olavo Bilac sobre o hospício e os valores presentes nessa instituição. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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