Muito da trajetória de Falcão se revela em Clandestinos, cujo tema é a busca de artistas iniciantes por seu lugar ao sol. Quase todos os personagens são atores às voltas com aquelas questões típicas do começo da vida profissional – numa brincadeira metalinguística, eles são interpretados por elenco também de iniciantes. Há, ainda, um diretor com a cabeça imersa em dilemas artísticos. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
“É complicado entrar num estúdio da Globo para dirigir o programa mais cool da televisão brasileira da época, com um elenco incrível, sendo que você é baixinho, nordestino e estreante”, diz Falcão, referindo-se à Comédia da vida privada, série baseada na obra de Luis Fernando Verissimo, uma de suas primeiras experiências na TV. Não à toa, escrever Clandestinos foi catártico. “Um amigo que me conhece muito bem, depois de ver a peça, disse que eu não precisava mais fazer análise.” Mas ele voltou a fazer terapia depois de Clandestinos.
Penúltimo de 13 filhos de um médico com uma dona de casa, João Barreto Falcão Neto nasceu no Recife, mas a família morava em Tiúma, uma vila operária no município de São Lourenço da Mata, a 30 km da capital. Ali, na infância e juventude, divertia-se pelo cultivo da música e do cinema.
Mais do que uma diversão juvenil, a música seria uma marca em sua carreira – são de Falcão composições que entraram na peça A dona da história e no filme Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes. Ele dirigiu um musical, Cambaio, junto com Adriana, com canções de Chico Buarque e Edu Lobo, e uma peça musicada, Divina Elizeth, baseada na vida de Elizeth Cardoso. Em Clandestinos, a maioria dos atores canta e toca instrumentos.
O espetáculo A máquina, de 2000, lançou Vladimir Brichta, Wagner Moura, Lázaro Ramos e Gustavo Falcão. Foto: Sérgio Lobo/Divulgação
Se o cinema era presente e a música, mais ainda, o teatro era algo distante da realidade de Tiúma, resumindo-se aos autos de Natal encenados no Cine Rex. Num deles, o pequeno João foi colocado às pressas para substituir um menino que faltara. Diante da atuação, a mãe disse que ele não dava para a coisa. Foi uma de suas poucas experiências como ator. Anos mais tarde, ele faria um teste para atuar em Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues. Passou, mas tem autocrítica suficiente: “Eu atuei muito mal, tenho certeza”. Nunca mais subiu num palco para encenar.
AUDIÇÕES LOTADAS
Para chegar até o elenco de Clandestinos, Falcão esteve do outro lado da bancada, comandando os testes. Corria o ano de 2008, e ele fora convidado a gerenciar o extinto Teatro Glória, no Rio. Para ocupar os horários vagos, teve a ideia de abrir oficinas de atuação, que resultariam em uma peça. Um site foi colocado no ar, convocando o público para as audições. Ele imaginava, no máximo, 200 inscrições. Apareceram mais de 3 mil candidatos. No fim, restaram 14.
Foi apenas a segunda experiência de Falcão com audições – o que nunca o impediu de ser uma catapulta de talentos. “Trabalhei com monstros consagrados, mas também com muita gente iniciante”, diz Falcão, confirmando seu apreço pelo risco. No primeiro grupo, Paulo Autran (no filme A máquina), Marco Nanini (em O burguês ridículo e em Uma noite na lua), Marieta Severo (em A dona da história e, depois, emQuem tem medo de Virginia Woolf, esta novamente com Nanini) e Glória Menezes (em Ensina-me a viver, baseada no filme homônimo).
Já no segundo grupo, ele ajudou a projetar pessoas como Arlindo Lopes, coprotagonista de Ensina-me a viver, e Alinne Moraes, que estreou pelas mãos de Falcão no cinema, em Fica comigo esta noite, e no teatro, em Dhrama. Falcão também foi o responsável pelo lançamento dos então desconhecidos Wagner Moura, Lázaro Ramos e Vladimir Brichta, que integraram o elenco de A máquina, em 2000.
“Primeiro, conheci Vlad. Fui conversar com ele, fiz vários elogios. Ele disse: ‘Tu tem que conhecer Wagner’. Fui ver o Wagner em uma peça, e depois conversei com ele. Falei: ‘Cara, você é muito bom’. Ele disse: ‘Tu tem que conhecer Lazinho’”, conta, às risadas. Os três voltariam a trabalhar ainda por diversas vezes com Falcão – um hábito, aliás, que ele cultiva com muitos atores que já viraram amigos.
ITINERANTE
Mudanças de cidade, como as que vivenciaram Brichta, Ramos e Moura, após o sucesso, estão em pauta também em Clandestinos. Alguns personagens, assim como os atores que os interpretam, saíram de cidades pequenas. A primeira mudança de Falcão, nada tinha a ver com questões profissionais: foi com a família, aos 13 anos, para o Recife – onde ele acabaria descobrindo a boemia. “Com uns 15 anos, tomei meu primeiro porre.” Começou a se dedicar mais à música, fez serenatas, participou de pequenos festivais, compôs. Na escola técnica, fez mais amigos que gostavam de música. A intimidade com o assunto o tornou popular entre as moças.
Uma das que ele conheceu, em 1977, foi Adriana, sua futura mulher. O encontro se deu na fila da matrícula para a faculdade de Arquitetura. A amizade, no entanto, só evoluiu anos depois para o namoro e o casamento. “Na hora em que a gente se conheceu, percebi que ele era especial”, elogia Adriana, com quem Falcão dividiu inúmeros projetos profissionais ao longo de mais de 20 anos e teve duas filhas, Clarice e Isabel. “A Adriana foi, é e sempre será minha maior influência de vida profissional e pessoal. É a criatura mais talentosa que conheço”, derrama-se Falcão.
Mas o interesse pelo teatro veio por meio de outra moça, uma namorada de faculdade que iria fazer uma adaptação de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. O diretor precisava de um violeiro. Falcão topou o convite. “Eu vi que o teatro era fácil, era só juntar algumas pessoas e ter uma boa ideia.”
Para selecionar o elenco da peça Clandestinos, que virou série de
televisão, João Falcão recebeu mais de 3 mil inscriçôes para audições.
Foto: Marco Antonio Gamboa/Divulgação
Na mesma época, ele assistiu à peça Macunaíma, de Antunes Filho, e conheceu o grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone. “O Asdrúbal me despertou o fascínio pelo trabalho de grupo e pela temática contemporânea. Quando vi Macunaíma, descobri a figura do diretor, inventei que queria fazer aquilo”, diz. A terceira influência veio do Vivencial, grupo experimental de teatro de Olinda, surgido em 1974, sob influência da contracultura. “Era um grupo muito louco, muito diferente, underground mesmo. Tinha travesti, policial, um clima meio cabaré. Acho que deles herdei o gosto pela margem, pela clandestinidade”, afirma.
PIRIQUITO XIQUE
A estreia como autor foi em 1981, com a comédia Muito pelo contrário – um enorme sucesso no Recife. Em sua curta temporada no Rio, tinha gente sentada até no chão. No último dia, estiveram o comediante Agildo Ribeiro e o ator, diretor e produtor de TV Augusto César Vannucci, que foram falar com Falcão. “Eles queriam que eu participasse de uma reunião sobre um programa que eles iriam fazer na Globo. Fui, mas fiquei mudo. Depois, eles me pediram um texto. Dei a desculpa da faculdade e recusei. Foi uma proposta que nunca mais me fizeram. Eles queriam que eu escrevesse qualquer coisa”, lembra.
Mas, a partir daí, a carreira de Falcão começou a deslanchar no Recife – sempre com base no risco. Depois da comédia Xilique peba piriquito xique, dirigiu peças alheias, compôs músicas para espetáculos de outros e teve uma experiência bem-sucedida artisticamente, mas de fracasso financeiro com a Caixa Mágica, uma espécie de teatro-bar em que havia performances e peças, que durou seis meses. Também fez teatro infantil, começando com O pequenino grão de areia, que teria diversas remontagens, assim como A ver estrelas, escrita sob encomenda.
Com o dinheiro conseguido com o texto de A ver estrelas, Falcão foi para o Rio de Janeiro, em meados dos anos 1980. “Foi uma merda. Morei por um tempo na casa de um amigo, mas logo ele teve que entregar o apartamento. Não conseguia montar meus textos. Passei fome, pegava ônibus circular para poder dormir nas viagens. Mas eu não queria voltar sem ter acontecido no Rio. Depois de quase um ano, desisti e voltei para o Recife”, conta, com uma ponta de frustração.
De volta, ele conseguiu emprego numa agência de publicidade. E fez carreira brilhante na área – enquanto escrevia e dirigia algumas poucas peças, como Mamãe não pode saber, outro sucesso. Como publicitário, Falcão ganhou prêmios e fez dinheiro. Mas a comichão da mudança se fazia notar. “Se passaram seis, sete anos. Até que você diz: ‘Não aguento mais fazer isso’ ”.
A oportunidade de ir para o Rio de Janeiro de novo surgiu por meio do diretor Guel Arraes, apresentado a Falcão por amigos comuns. Ele aceitou o convite de Guel para colaborar nos textos de alguns episódios do programa Brasil especial, que adaptava textos da literatura brasileira. Durante meses, Falcão conciliou o trabalho com a publicidade, viajando constantemente para o Rio.
Àquela altura, era casado com Adriana, quando, em meados dos anos 1990, Guel sugeriu que se mudasse para a capital carioca. A proposta era que ele ganhasse mais para dirigir alguns dos episódios daComédia da vida privada, além de ajudá-lo na direção conjunta de uma peça com Marco Nanini, uma adaptação da obra de Molière, que viria a ser O burguês ridículo. Falcão aceitou.
O resto é história: o “clandestino” no Rio, o “baixinho, nordestino e estreante” se tornaria um dos autores e diretores mais admirados de sua geração. Um felizardo, segundo ele próprio – basta tomar, por comparação, os milhares de candidatos que ficaram de fora de Clandestinos, e que (ainda) não conseguiram deslanchar. “É uma parcela mínima de pessoas que consegue viver de arte no Brasil. E eu nem estou falando de fama, que isso é outra história. A fama é momentânea. Criar uma carreira, um vínculo com o trabalho, isso é que ainda é difícil.”
RAFAEL TEIXEIRA, jornalista.