Arquivo

“A ideia da morte da canção é absurda”

Compositor da vanguarda paulista da década de 1980, que concilia as atividades de criação com a formação acadêmica, Luiz Tatit discute os novos paradigmas da música contemporânea

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Novembro de 2010

Luiz Tatit

Luiz Tatit

Foto Tiago Calazans

Desde a década de 1980, quando fundou o Grupo Rumo, o compositor Luiz Tatit já conciliava as atividades de criação com a formação acadêmica. Seu objeto de estudo no doutorado era justamente a canção e, ainda hoje, atuando como professor da Universidade de São Paulo, suas pesquisas investigam elementos essenciais da conjunção entre letra e melodia. A melhor tradução de sua trajetória talvez esteja na música Mestres cantores, feita em parceria com José Miguel Wisnik, outro compositor dividido entre a criação musical e a atividade universitária: “Nós, aqui, mestres cantores, aprendizes felizes, modestos e muito dignos da prosa, da prosódia, da prosápia, da poesia / Da música popular, da canção enquanto tal, da música total / Da voz que fala pela fala e pela voz”.

Defensor do entendimento da canção como um desdobramento da própria fala, a partir da entoação, Tatit refuta qualquer possibilidade de “morte da canção”, como haviam indicado alguns críticos e compositores. Ao contrário, percebe uma produção musical crescendo vertiginosamente no Brasil e mantendo um nível elevado de qualidade. Reconhece, no entanto, mudanças no modo de produção e, principalmente, de difusão das canções, o que lhe parece positivo e incontornável. Durante uma breve passagem pelo Recife, Tatit recebeu a Continente e falou sobre a vanguarda paulista, festivais da canção, download de músicas na internet e sobre a polêmica morte da canção.

CONTINENTE Em quais aspectos as atividades de pesquisador e de músico se completam ou antagonizam?
LUIZ TATIT Eu nem tive experiência de viver um só lado da coisa. Eu não sei como seria lidar com uma coisa só. Mas são atividades bem diferentes, uma é de análise e a outra é criar, bolar histórias ou situações a partir de melodias. Normalmente, a gente nunca sabe onde uma canção vai dar, então, até o estado de espírito é diferente. Na criação, você tem que estar com certa disponibilidade para ficar lidando com aquilo ao longo de horas. Na pesquisa, não, você pode parar porque ela tem uma objetividade analítica e em qualquer ponto que você retome é possível dar continuidade.

CONTINENTE Mas a época em que o Grupo Rumo estava mais ativo no cenário musical coincidiu justamente com o seu mestrado e doutoramento. As pesquisas não geraram influência no ato de compor?
LUIZ TATIT O Rumo se reunia um pouco para estudar a canção e um pouco para fazer arranjos para as músicas, então nossa pergunta já era: “O que é que a gente deve compor, hoje, que resulte em uma música diferente, mas que ao mesmo tempo mantenha o que é mais característico da canção?” Esse questionamento já estava na linha intermediária entre a produção e a reflexão, tanto que o elemento que foi encontrado nesse momento foi a entoação da fala. A gente percebeu como seria a nova composição e, ao mesmo tempo, no meu trabalho, eu percebi que poderia ser uma fonte de defesa de tese, porque tinha uma hipótese ali, de que a entoação era o embrião da canção.

CONTINENTE As inovações propostas pelo grupo, junto a outros artistas como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, configuraram a vanguarda paulista da década de 1980. Qual era o elo entre essas produções “de vanguarda”?
LUIZ TATIT Houve a passagem de todos pela Escola de Comunicação e Artes de São Paulo. Os membros do grupo Premê, o próprio Arrigo, vários integrantes do Rumo, como o Hélio Ziskind, o Pedro Mourão e eu, todos tínhamos passado por essa faculdade, porque era a única chance de trabalhar com música no nível de universidade. Na época, a linha da diretoria e dos professores principais era música de vanguarda, mas de vanguarda erudita; então, o slogan de vanguardista parece ter sido importado da ECA. O Maurício Kubrusly cuidava das pautas de música popular no Jornal da Tarde; ouviu as músicas do Rumo e achou maravilhosas. Ele classificou como de vanguarda na música popular, então, essa história da “vanguarda” veio de fora para dentro.

CONTINENTE Do ponto de vista estético, não existia uma proposta alinhando essas “tendências vanguardistas”?
LUIZ TATIT Os projetos eram diferentes, o nosso era o de tentar ver qual elemento dentro da canção causaria uma música nova. A proposta do Arrigo era importar da música erudita a escala dodecafônica. Então, a música ficava diferente porque não tinha tonalidade, a chamada música atonal. O Itamar Assumpção, que era baixista do Arrigo, recebeu aquela influência também. O engraçado é que ele foi o que melhor concebeu um modelo de música para tocar no palco, ao mesmo tempo incluindo elementos modernos. A música dele era muito mais bem-acabada como canção do que a do Arrigo e do que a nossa. Até porque o jeito de ele se apresentar era muito mais dinâmico naquele momento. Não deu certo na mídia por outras razões, como problemas com gravadoras.


Arrigo Barnabé. Foto: Divulgação

CONTINENTE Após o fim do grupo, você começou o trabalho solo e já lançou cinco discos. O que mudou na sua forma de criar?
LUIZ TATIT Na época em que nós terminamos o Rumo, em 1992, eu nem estava pensando em continuar. Já tinha desencanado e estava preocupado com a livre-docência. Mas aí começou a acontecer na minha vida essa história de parceria. O Zé Miguel Wisnik começou a me instigar a fazer coisas, depois a Ná Ozetti me trouxe umas melodias para eu letrar, na mesma ocasião começou o projeto do Palavra Cantada e o Paulo Tatit também me pediu algumas canções. Eu quase fui sugado para a música outra vez, sem ter planejado. Continuei compondo do mesmo jeito e, quando vi, estava produzindo mais do que antes, o que mudou foi essa história da parceria.

CONTINENTE Certa vez você disse que tudo poderia ser pensando sob o crivo da música popular brasileira. O que seria enxergar o mundo sob o olhar da canção?
LUIZ TATIT Isso é uma coisa bem brasileira. A gente relembra os períodos vivenciados através da trilha sonora da nossa vida, fazendo mais associações com a canção do que qualquer outra linguagem. Nós ouvimos uma canção e automaticamente lembramos o que aconteceu em determinada época. E, às vezes, as músicas de que as pessoas gostam acabam definindo-as para a gente. A canção nos acompanha até no sentido de escolher as amizades, as reflexões, a maneira de pensar o mundo. Além disso, a canção fala sobre quase tudo e a melodia amolece os assuntos, ela torna os assuntos mais difíceis passíveis de serem pensados.

CONTINENTE Este ano, estreou o documentário Uma noite em 67, sobre o festival daquele ano, o que despertou certa nostalgia no público sobre festivais. É anacrônico pensar em festival da canção hoje?
LUIZ TATIT Sem dúvida, isso é anacrônico, porque a música atualmente é difusa. Naquele momento, todas as tendências musicais partiam de uma só emissora. A linha dura da MPB estava na Record, o iê-iê-iê, considerado a música mais alienada do mundo, estava na Record, a música saudosista, chamada bossaudade, estava na Record, a música gingada e de influência americana, proposta por artistas como o Wilson Simonal, estava na Record. Se você estourasse uma bomba lá, acabava com a música brasileira, porque todos eram artistas da Record. Além disso, a televisão era absoluta, porque não tinha internet. A canção passou a ter importância nacional e se tornou uma questão central, na qual se decidem os problemas da nação. Não significa que foi o nosso melhor momento musical, foi o melhor momento de investimento.

CONTINENTE Então você avalia o campo da música, na atualidade, de forma mais positiva?
LUIZ TATIT Hoje, o panorama é muito mais rico do que era naquela época, não tem comparação. Quem começa a tocar hoje, já toca melhor do que qualquer músico daquela época, já compõe melhor, até porque já tiveram compositores do passado como modelo. Todo mundo começa a partir do Caetano, do Chico, do Tim Maia. A diferença é que a regra das músicas é a dispersâo.


Itamar Assumpção. Foto: Divulgação

CONTINENTE Mas, se estamos vivendo um momento tão criativo e de alta qualidade, como você diz, por que José Ramos Tinhorão e outros críticos musicais insistem em falar na morte da canção?
LUIZ TATIT Primeiro, é preciso lembrar o seguinte: nenhuma previsão do Tinhorão deu certo. Ele é um grande pesquisador de música, mas se a gente fosse levar em consideração as suas previsões não teria existido nem bossa nova, porque ele achava que aquilo era influência de música americana e não funcionaria no Brasil. O Chico Buarque também falou em morte da canção, mas mencionando o desgaste do formato que ele costuma fazer, ele acha que está um pouco sem lugar... Ao mesmo tempo, a força adquirida por estilos como o rap ajuda a gerar esse tipo de polêmica. Mas ele é o exemplo da canção mais pura que existe: a fala. Mesmo se nós só tivéssemos rap daqui para frente, a canção estaria salva, porque significaria que ela tomou conta de tudo e alcançou até uma forma mais crua, através da fala pura. De forma geral, acho essa hipótese da morte da canção, absurda... Você imagina uma mãe tentando ninar uma criança sem canção? Se isso acontecesse, a mãe iria ninar uma criança dizendo: “Dorme! Dorme!” Não tem o menor sentido. Quer dizer, toda pessoa que fala, também canta. Então, não tem como acabar, a não ser que as pessoas deixem de falar.

CONTINENTE E sua composição Quando a canção acabar é justamente sobre essa polêmica.
LUIZ TATIT É verdade. Fiz essa brincadeira da cigarra e da formiga... Porque se alguém fosse se preocupar com a morte da canção seria a formiga, que ficaria guardando composições para ter um acervo quando a canção acabasse. Já a cigarra não está ligando muito para essa história, ela quer mesmo é viver o presente. Eu via o pessoal falando muito sobre esse assunto e achei que dava pano para manga, mas de um jeito meio folclórico. Porque nunca vai acontecer, mas faz a gente pensar.

CONTINENTE Você considera as releituras e regravações interessantes para a difusão da canção, mesmo quando são criadas alterações nas letras das músicas?
LUIZ TATIT Não sei se é pelo fato de eu não ser um músico muito obsessivo, então sempre acho que, quando outros intérpretes pegam para gravar, acaba ficando melhor. O ato de retirar uma palavra ou colocar uma frase na canção é algo extremamente habitual, porque a origem dela é oral. Quando você está fazendo letra, você põe um verbo ou deixa de colocar por razões ocasionais, não tem qualquer compromisso fixo. Talvez esteja aí uma boa diferença entre poesia e letra, porque o único problema para a letra é se adequar à melodia. Ninguém precisa ficar se apegando à construção porque foi feita na hora da inspiração. Letra, você tem que adaptar à melodia, essa história de que fez e não pode mexer, isso não existe.

CONTINENTE No ano passado, Tom Zé instigou no blog dele uma leitura coletiva de O século da canção e as pessoas discutiram bastante o seu livro. Esse tipo de experiência lhe parece positiva?
LUIZ TATIT O Tom Zé tem umas iniciativas que, quando ele conta, a gente acha uma loucura e se pergunta: “Como é que isso vai dar certo?” Mas, depois, ele começou a me mandar trechos das discussões e fiquei impressionado. Acho que ele acabou tornando o livro não só conhecido, mas lido, o que é o mais importante. Atualmente, a maior parte das pessoas que compra um livro não lê tudo, mas apenas um trecho. Aqui, no Brasil, essa cultura letrada é mais escassa ainda, todo mundo lê um pouquinho do livro e larga. Tom Zé acabou fazendo muita gente ler o livro inteiro. É um livro que em alguns momentos a leitura é direta, mas em outros tem análises difíceis sobre canção.

CONTINENTE Já que estamos falando de internet, você percebe as redes de difusão (Youtube, MySpace, LastFm) e o próprio hábito de fazer download de músicas como aliados da perpetuação da canção?
LUIZ TATIT Acho que isso só pode ser bom, além de ser irreversível. O que está em pauta atualmente é a questão dos direitos. Como organizar minimamente os downloads para que esses direitos cheguem ao artista? Porque tem muita gente que vive de direitos autorais... Existe essa história de pagar o mínimo, mas isso acho difícil, porque sempre tem um jeito de não pagar. Penso que, resolvida a questão do direito autoral, o gesto de baixar a música, de procurar e encontrar músicas na internet, é maravilhoso, porque a reprodução é em progressão geométrica. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

veja também

Folk rock: Um velho trovador que não enferruja

Jean-Luc Godard: Constrangedora estatueta a um reinventor

Acervo secreto de Maria Carmen