N’O retábulo de Santa Joana Carolina, publicado no livro Nove, novena, Osman Lins antecede os capítulos da narrativa – ao todo 12, que ele denomina de “mistérios” – com um prólogo narrado em terceira pessoa, carregado de alta densidade poética e sem ligação clara ou direta com o texto que precede, cada qual narrado em primeira pessoa por um personagem designado por um símbolo.
Para assinalar o fio de muitas vozes, que se enreda para contar a estória de Joana Carolina, homenagem à avó que criou o escritor, Luiz Carlos Vasconcelos lançou mão do coro. E é na utilização desse recurso que está a chave do espetáculo, em que está o melhor e o pior da montagem.
Retábulo é encenado sobre uma base retangular formada por blocos de madeira, ladeada por quatro arquibancadas. O ponto alto se dá no tempo em que as cenas exploram a dimensão espacial do tablado, quando o coro encontra a justa medida, combinando com ações dramatizadas pelos personagens o que é recitado em uníssono, num jogo teatral que faz o texto, literário e poético, se esgarçar e se vivificar em cena. É o que se vê no quadro em que Joana vela um parente e o coro, utilizando máscaras, dança um carnaval funesto. Os movimentos do maracatu e do cavalo-marinho se ressignificam sem a música e sem o contexto festivo, tornando-se fantasmagóricos.
Ocorre, como foi dito, que o espetáculo não está pronto. O coro, no arrastar da encenação, soa cansativo, monocórdio e repetitivo. Em alguns momentos, o grupo de vozes consegue criar modulações dentro da massa sonora, como se, ao mesmo tempo, obtivesse a unidade dentro da pluralidade, acentuando timbres e tons de interpretação.
No elenco, estão todos os atores de Vau da Sarapalha, mais o integrante da companhia, Buda Lira, além dos atores convidados Alan Monteiro, Suzy Lopes e Ingrid Trigueiro. Destaque para o ator Servílio Holanda, famoso pela performance do Cachorro Giló. Depois de tanto insistir, obteve um papel em que falasse. Interpreta, dentre outros papéis, o coronel dono do engenho.
FORMA DE VITRAL
Osman Lins não conheceu o rosto da mãe, falecida em complicações do parto poucos dias após seu nascimento. Nem foto havia dela. Ter-se tornado escritor, ele disse algumas vezes, resultou da busca desse rosto desconhecido.
Na narrativa, porém, há um paradoxo: o retábulo, lugar de exposição no altar católico, é dividido em mistérios que, na liturgia cristã, remetem ao segredo dos primeiros cristãos sobre alguns dogmas. Eis o jogo bem-resolvido literariamente e apenas sugerido no palco: o de revelar e esconder, de misturar biografia e criação, o que é dito e o que é suprimido.
N’O retábulo de Santa Joana Carolina, alguns personagens dão a entender que estão diante de um fotograma, ao se descreverem como se estivessem simultaneamente dentro e fora do tempo narrado: “Acompanhei, durante muitos anos, Joana Carolina e os seus. Lá estou eu, negra e moça...”, narra a velha, interpretada por Soia Lira, numa das primeiras falas do espetáculo.
“Em um dos mistérios, penso colocar, de alguma maneira, um fio no pé com uma cor diferente para cada papel, para que os fios se entrecruzem”, vislumbra Luiz Carlos. No enterro de Joana Carolina, os personagens buscam saber quem foi a protagonista. Como se cada voz, à sua maneira, fosse o caco de um vitral que conseguisse um rosto. Um semblante materno.
ASTIER BASÍLIO, Jornalista, poeta e crítico de teatro, radicado em João Pessoa. Coautor da peça Ariano.