Há várias décadas, acompanhado diariamente por milhares e milhares de pessoas, Geraldo Freire é um “ilustre desconhecido” no que se refere a muitos – e incomuns – episódios de sua vida. As aventuras começaram quando, literalmente “na buraqueira”, devido à precariedade das estradas e do transporte, enfrentou as centenas de quilômetros que separam Juazeiro do Norte, no Sertão do Ceará, de Pesqueira, no Agreste pernambucano. Nada demais, se naquele tempo não tivesse apenas dois dias de nascido (oficialmente, veio ao mundo em 28 de julho de 1949, mas a data exata de nascimento é um mistério até para o próprio Geraldo, que, por motivos vários, ao longo da vida teve a idade algumas vezes aumentada).
Pelé foi umas das muitas celebridades entrevistadas nos anos 1970, quando atuou como repórter esportivo. Foto: Arquivo pessoal
Nascido, na verdade, em Caririaçu, à época distrito de Juazeiro do Norte, o radialista (que muitos pensam ser pesqueirense), aos nove anos, viveu uma de suas maiores odisseias, sobretudo se considerada a idade: fugiu de casa, viajando de trem para o Recife, após vender, escondido, uns 10kg das mamonas plantadas pelo pai, Lauro Gomes dos Santos, que fora para Pesqueira trabalhar na Fábrica Peixe, mas tornou-se agricultor depois que a produção de doce no município decaiu.
A decisão de fugir se deu pelos desdobramentos do tempo ruim que se instalou depois que, aos quatro anos, Geraldo perdeu sua mãe, Odília Freire dos Santos. “O bom é que não morra ninguém numa família, mas, se tiver de morrer, que não seja a mãe, porque isso desarruma tudo”, diz o comunicador, que, ao contrário de suas duas irmãs, foi proibido pelo pai de se mudar para a capital pernambucana, para residir na casa de uma tia materna. O destino do menino, nos quatro anos seguintes, foi a lavoura, o que prejudicou até os estudos na Escola Rural Municipal do Fundão de Dentro, na Vila de Cimbres, distrito pesqueirense. “Só aprender o nome da escola já era um verdadeiro vestibular”, relembra o radialista.
A viagem para o Recife era a apenas o “prefixo” de novas e grandes aventuras na vida de Geraldo, que, decidido a ganhar um dinheirinho para ajudar os parentes e melhorar de situação, fez de tudo, numa frenética mudança de atividades. Entre outras coisas, cuidou de barraca na feira de Casa Amarela e vendeu cachaça numa bodega de Água Fria. Certa vez, na função de entregador de correspondências, ao ir pela primeira vez ao Edifício JK, centro do Recife, ficou tão impressionado com a farda do ascensorista, que chegou a alimentar o sonho de um dia trabalhar em elevador.
MARRECO DA RAMPA
Apesar de classificar sua memória como muito ruim para a gravação de datas, existe uma que Geraldo não esquece nunca: 1º de agosto de 1968, quando assinou com a Rádio Repórter seu primeiro contrato profissional. Foi nessa emissora que ele – hoje profundo conhecedor do mundo do rádio também na área trabalhista, pois atuou alguns anos como presidente do Sindicato dos Radialistas de Pernambuco – começou a desenvolver o irreverente estilo que o tornou famoso (talvez porque, numa época em que o estresse faz a festa, um dos papéis sociais do comunicador seja o de proporcionar ao povo a oportunidade de rir).
Um dos quadros de sucesso do programa na Repórter foi o Tribunal da Cana, cujo nome, proibido pela Polícia Federal, mudou para Tribunal do Leite. Era uma sátira aos júris da TV, de muita audiência na época. O grande diferencial é que os jurados eram bêbados inveterados que costumavam dormir sob a rampa do Hospital da Restauração. “Revelados” pelo então repórter policial Jota Ferreira e com apelidos como Marreco, Pipoquinha e Exu Cultura, eles – sempre embriagados e nem um pouco asseados – radicalizavam nas críticas. Umas das preocupações de Geraldo eram os palavrões que às vezes soltavam, como se não bastassem – no tempo em que a tesoura da censura estava afiadíssima – os ditos pelo próprio comunicador, talvez o precursor, na mídia brasileira, do uso sistemático das chamadas “palavras de baixo calão”.
Há 42 anos trabalhando no rádio, Geraldo Freire chega ainda durante a madrugada para iniciar os trabalhos. Foto: Maíra Gamarra
O mais popular dos jurados era o Marreco, que acompanhou o radialista quando ele, convidado pelo locutor esportivo Roberto Queiroz, foi para a Rádio Olinda, emissora pertencente à Arquidiocese de Olinda e Recife, na qual, além da censura dos militares, existia a dos religiosos. Como o programa de Geraldo começava de madrugada e era interrompido às 6h para Dom Helder apresentar o seu, Um olhar sobre a cidade, que era acompanhado até pela elite católica, o radialista precisava esconder Marreco – que continuava aprontando poucas e boas –, para ele não ser visto pelo arcebispo. A tarefa não era difícil. “Eu botava ele no banheiro das mulheres, pois sabia que era um lugar aonde Dom Helder jamais iria”, revela Geraldo.
A liberdade de linguagem e as músicas de duplo sentido tocadas nos programas do radialista em várias emissoras por onde passou (“A música dos grandes mestres” era a sessão específica para esse tipo de canção) fizeram até Luiz Gonzaga, que já cantara muitos versos na linha “pra cavalo véio, o remédio é capim novo”, certa vez comentar: “É, Geraldo, estás certo: o povo adora putaria. Mas tuexagera!...”. Caso para ser analisado com lupa por sociólogos e estudiosos da comunicação, o sucesso de Geraldo Freire – cujo site, através de um texto de Millôr Fernandes, faz verdadeira apologia ao palavrão – é também muito grande junto à chamada Classe A. Uma experiência comum para o comunicador é ouvir, de pessoas vinculadas a várias esferas do poder: “Morro de rir com as coisas que você diz”. Outra frase muito repetida (e que funciona como uma espécie de perdão a priori) é: “Isso são coisas de Geraldo...”.
COMUNISTA MONOGLOTA
Uma das maiores proezas de Geraldo foi ter se tornado um bem-sucedido apresentador de rádio num tempo em que ainda se valorizava muito as “grandes vozes”. Mas isso não o impediu de viver, quando trabalhou na Rádio Jornal, no início dos anos 1970, uma de suas mais inusitadas experiências. A emissora estava em crise e foi uma excelente notícia o programa A Musicalíssima é uma Parada, por ele apresentado, sagrar-se líder de audiência. A festa, no entanto, só durou até um dos diretores da empresa, depois de ouvir o apresentador, decidir demiti-lo.
Mas uma das mais surpreendentes histórias de Geraldo aconteceu no final da década de 1970, quando foi preso e interrogado como comunista. À época, apresentava, na Rádio Capibaribe, um programa direcionado aos motoristas de táxi, responsáveis por 90% de sua grande audiência. O lado dramático dessa relação se deu quando um taxista foi assassinado e o radialista e os motoristas decidiram, numa manifestação de protesto, levar o corpo da vítima até o Palácio do Governo. A grande questão é que, ao saberem da mobilização, centenas de profissionais aderiram e os seus carros terminaram bloqueando todas as entradas e saídas do centro do Recife. O que, para as forças de segurança, parecia ser um grande atentado comunista, teve um final feliz. Mas, muitos dos que assistiram ao interrogatório de Geraldo, ainda hoje devem lembrar de uma resposta do radialista: “Sou comunista não, doutor! Para ser comunista, o cara tem que saber várias línguas, além de usar óculos e ter barba grande...”.
GILSON OLIVEIRA, jornalista e revisor.