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Fervo, frevo: Aula espetáculo

TEXTO Viviane Souto Maior

01 de Novembro de 2010

Ilustração Hallina Beltrão

Você conhece o frevo pernambucano? É muito provável que conheça apenas as canções mais famosas como Vassourinhas (Matias da Rocha e Joana Batista Ramos) e Madeira que cupim não rói (Capiba) e que as escute somente no período carnavalesco ou até mesmo só no Carnaval. E a dança do frevo? O famoso passo? Nas ruas, arrisca-se um passo, sugere-se uma tesoura, desfila-se com sombrinhas e veste-se a camisa do carnaval pernambucano, apenas naquela época do ano. Entretanto, não somente no aspecto musical, mas também na sua dança, o frevo vem se tornando referência artística de grande importância e representatividade, sendo pensado como arte que transcende suas manifestações ligadas ao Carnaval.

O frevo é um dos elementos da cultura popular pernambucana que tem ganhado visibilidade, a partir de investigações recentes realizadas por artistas e pesquisadores. Entre essas investigações, que pensam o frevo enquanto arte e que enxergam nele, em especial no passo, uma riqueza de material com possibilidades artísticas variadas a serem conhecidas e trabalhadas, está o projeto Fervo, frevo: aula-espetáculo, contemplado em 2009 pela Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as Interfaces dos Conteúdos Artísticos e Culturas Populares, por meio do Ministério da Cultura. A pesquisa, por mim desenvolvida e que tem como resultado uma aula-espetáculo, busca incorporar elementos da dança frevo no treinamento do ator e na criação cênica.

A dança do frevo é extremamente rica e possui uma gama de elementos que precisam ser contemplados e divulgados, principalmente visando à valorização e ao conhecimento do passo, para que não fique exclusivamente vinculado à folia momesca e à extroversão, o que resulta numa visão que desconsidera as suas variadas possibilidades, modalidades e nuances.

O frevo surgiu nas ruas do Recife no fim do século 19 e se estruturou como forma artística no decorrer do século 20. Sua dança começou a ser elaborada de maneira sistematizada somente na década de 1970, pelo Mestre Nascimento do Passo, que desenvolveu um método próprio, com o objetivo de perpetuá-la às novas gerações.

A metodologia criada por Nascimento se tornou uma grande facilitador para o entendimento e aprendizado do passo, permitindo que alguns princípios, também utilizados no teatro (dentro do treinamento do ator-dançarino), sejam facilmente percebidos, apreendidos e trabalhados. O projeto Fervo, frevo: aula-espetáculo tem como base a dança e, em especial, o método do Mestre Nascimento. Outra referência do trabalho é o grupo Guerreiros do Passo, formado por discípulos de Nascimento, que há cinco anos desenvolve um projeto de aulas gratuitas de dança em praças e ruas da Região Metropolitana do Recife, sem nenhum tipo de incentivo e apoio de instituições particulares ou governamentais.

A pesquisa estabelece o diálogo entre o método criado por Nascimento e o pensamento da Antropologia Teatral. O encontro e o diálogo entre essas duas linguagens artísticas acontecem com o foco no trabalho do ator-dançarino e se valem de princípios identificados na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis das tradições pessoais e coletivas, para o estudo do comportamento cênico pré-expressivo.

Com a apresentação da aula-espetáculo foi possível identificar o interesse e a admiração do público pelo frevo, ao mesmo tempo em que se percebeu a sua falta de conhecimento sobre o assunto. Foram apresentadas algumas modalidades da dança frevo identificadas por Mestre Nascimento do Passo e desconhecidas por muitas pessoas. Há um trabalho com diferentes qualidades corporais presentes em cada uma delas, que tanto enriquece o treinamento do ator-dançarino como favorece a criação de personagens e situações cênicas. Alguns exemplos identificados por Nascimento são: o do ginasta, do bêbado, da criança, do cinquentão, da mulher pernambucana, do capoeira, do carancolado, da boneca, entre outros.

Ainda falta um reconhecimento ao trabalho artístico e pedagógico, de valor histórico e social, realizado por Nascimento do Passo. A seu respeito, encontramos depoimentos de foliões, carnavalescos, alunos, em livros e jornais, destacando a importância e sabedoria do seu legado e a sua dedicação e paixão pelo frevo. “O trabalho de Nascimento é, acima de tudo, um exemplo de resistência cultural, de luta política para retirar o frevo e o passo dos parâmetros do exclusivamente carnavalesco ou folclórico”, escreve a pesquisadora Maria Goretti Rocha de Oliveira, em seu livro Danças populares como espetáculo público no Recife de 1970 a 1988.

O projeto Fervo, Frevo: aula-espetáculo foi apresentado no III Festival Latino Americano de Teatro da Bahia, em Salvador, dando continuidade ao seu objetivo de divulgar seus resultados. Além do público em geral, acreditamos no interesse do trabalho para profissionais e estudantes das artes do corpo, desde que ele busca ampliar os conhecimentos sobre o frevo pernambucano, valorizar o teatro de pesquisa e enaltecer a prática dos brincantes populares. Assim, buscamos contribuir para a propagação e a valorização da cultura do Nordeste, do frevo e do teatro de pesquisa, fomentando a diversidade da produção cultural da região. A pesquisa pode ser acompanhada pelo blog www.viviver.blogspot.com. 

VIVIANE SOUTO MAIOR, bacharel em Interpretação Teatral pela UFBA, atriz, professora de teatro e pesquisadora.

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