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Farofa de rico, música de todos

TEXTO Felipe Trotta

01 de Novembro de 2010

Felipe Trotta

Felipe Trotta

Foto Maíra Gamarra

Pense na seguinte cena dominical: numa bela praia do litoral pernambucano, dezenas de barcos (de pequeno porte, mas confortáveis) estacionam diretamente na areia, onde desembarcam seus donos, amigos e familiares. Os ingredientes lembram muito o trecho de uma antiga canção do rock nacional: “a farofa, a galinha e a vitrolinha”. A sensação de quem chegou antes, e por meio terrestre, é mesmo de uma espécie de “invasão”. A farofa é uma metonímia interessante. Representa o alimento mais barato, amorfo, processado de forma simples, difícil de manejar e que assume papel secundário na composição da refeição. Acompanha os mais variados pratos e transita com certa desenvoltura por toda uma gama de desqualificações.

Nesse caso específico, a singela “vitrolinha” é substituída por um poderoso equipamento de som que, instalado na cabine das embarcações, impõe a todos os frequentadores da praia o repertório escolhido pelos donos dos barcos. Após sua chegada, Calcinha Preta e Aviões do Forró acomodaram-se confortavelmente na paisagem sonora da praia, assim como fariam em qualquer outra de nosso Estado (e além dele), chegando de carro, de ônibus ou pelos mares. O curioso é que as bandas de forró eletrônico costumam ser duramente atacadas pela crítica especializada como sendo uma expressão de gente “sem cultura”. Música de uma periferia que consome e reproduz acriticamente artefatos de baixo valor cultural, moldando seu gosto iletrado. A partir desse raciocínio, de forte inspiração bourdieusiana, uma melhor escolaridade representaria necessariamente uma predileção por outro repertório musical, longe daquelas bandas.

Seria fácil tomar o domingo dos barcos para rebater frontalmente esse pensamento. Porém, talvez uma manobra mais complexa seria pensar que alguns refrões como “pega e não se apega” ou “chupa que é de uva” podem falar sobre essa periferia, mas reverberam muito além dela. A alegria, a festa, o amor e o sexo – os temas mais recorrentes do forró eletrônico – funcionam como eixos de uma identificação musical e afetiva que agrega admiradores em várias esferas sociais, entrecortada pelo viés jovem e por determinados conjuntos de valores éticos compartilhados e negociados em larga escala.

Ouvi de um colega que um domingo nessa praia é uma “farofada de rico”. Talvez seja precisamente a “farofa” esse artefato cultural que agrega ricos, pobres e setores médios da sociedade, cantando juntos, com ironia, “você não vale nada/ mas eu gosto de você”. Ficamos de fora apenas nós, intelectuais da classe média, que não “misturamos nossa laia” e ainda não reconhecemos a força e o prazer do massivo. Eu mesmo, incomodado, fui embora da praia. 

FELIPE TROTTA, professor, doutor em Comunicação e Cultura e mestre em Musicologia.

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