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Boris Kossoy: Imagens de uma segunda realidade

Fotografias realizadas ao longo de quatro décadas revelam o acervo entre o documental e o ficcional criado pelo pesquisador e teórico paulista

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Novembro de 2010

A concepção editorial do livro é a de que imagens transcendem o tempo em que foram registradas, rearranjando-se em novos contextos

A concepção editorial do livro é a de que imagens transcendem o tempo em que foram registradas, rearranjando-se em novos contextos

Foto Reprodução

"A fotografia tem uma realidade própria que não corresponde necessariamente à realidade que envolveu o assunto, objeto do registro, no contexto da vida passada. Trata-se da realidade do documento, da representação: uma segunda realidade, construída, codificada, sedutora em sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, inocente, mas que é, todavia, o elo material do tempo e espaço representado, pista decisiva para desvendarmos o passado.”

Possivelmente, não há maneira mais clara de definir a fotografia como um campo de significações quanto na citação anterior, ainda mais quando associamos o seu conteúdo à atuação profissional de seu autor, Boris Kossoy. Como poucos fotógrafos no Brasil, ele vem empreendendo uma consistente carreira de pesquisador acerca desse meio, sobre o qual incide insistentemente a ideia de que é uma reprodução fiel da realidade, mesmo quando se está diante de uma imagem evidentemente manipulada, como a fotografia usada para fins publicitários. Na breve afirmação transcrita do livro Realidades e ficções na trama fotográfica (Ateliê, 1999), ele define não apenas o lugar de representação ocupado pela fotografia, mas também seu próprio ponto de partida como teórico, pesquisador e fotógrafo.


Numa foto realizada na periferia de São Paulo, em 1969, a metáfora do encontro entre a vida e a morte. Foto: Reprodução

O leitor brasileiro certamente está mais familiarizado com o Boris Kossoy pesquisador e teórico, já que essa tem sido sua faceta mais difundida nacionalmente, sobretudo pelos livros publicados, entre outros, o já citado Realidade e ficções na trama fotográfica, título que integra a trilogia iniciada com Fotografia & História (1989/2001) e encerrada com Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo(2007).

Há também na trajetória de Kossoy as funções administrativas e pedagógicas, nas quais ele, por exemplo, foi diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS/ São Paulo), elaborou o projeto de criação da primeira escola superior de Fotografia do país (Senac/SP) e foi professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Com essas e outra atividades, exercidas desde os anos 1970, sobrava pouco tempo para o Kossoy fotógrafo se manifestar.

É na ênfase no acervo de imagens realizadas por esse paulista filho de imigrantes, nascido em 1941, que recai Boris Kossoy: fotógrafo, lançado em parceria pela Cosac Naify, Pinacoteca e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Embora reúna material realizado ao longo dos anos 1960, 70, 80, 90 e 2000, é nas fotografias das décadas de 1970 e 80 que ganha corpo a publicação.


Produzida em Itapecerica da Serra, em 1973, A agonia do Sr. Frank integra a série Viagem pelo fantástico. Foto: Reprodução

FRAGMENTOS
A ideia de tempo como um caleidoscópio (e não como uma linha regular, imutável) norteia a edição, que, por isso, não segue uma cronologia, mas põe em contato fotografias realizadas em épocas e contextos diversos. “As imagens se distribuem por toda e extensão de nossa caminhada e interagem entre si, dialogam plástica e culturalmente com seu tempo, mas também transcendem a época em que foram criadas”, escreve o autor, na apresentação que faz ao livro.

Assim é que, mesmo abrindo o capítulo que traz a galeria de imagens Fotografias [1955–2008] com uma tomada de rua da década de 1950 – a primeira feita por ele, na Avenida São João – o que dá consistência ao conjunto são as fotos selecionadas das séries Viagem pelo fantásticoCartões antipostaisHommages e Cenas de Nova York I, todas dos anos 1970. Essas fotografias revelam, numa mirada a posteriori, um período de distensão na carreira do fotógrafo, quando ele mais experimentou. Foi um intervalo entre a produção dos anos 1960 – quando prestava serviços de free-lancer para periódicos, fazia retratos de artistas em estúdio e mantinha uma firma de pôsteres, distribuídos massivamente em bancas de revistas – e dos anos 1980, em que mergulha mais profundamente na produção acadêmica.

Sobretudo com a série Viagem pelo fantástico, que teve edição em livro em 1971, chegamos à evidência da ideia da fotografia como segunda realidade trazida pelo autor e como um campo para a criação e reflexão, que transcende e ao mesmo tempo qualifica a realidade (daí, possivelmente, ele não definir esse trabalho como surrealista). Boris Kossoy pretendeu com a série a realização de “contos fotográficos”, que, influenciados pela literatura e pelo cinema, “exploravam o drama existencial, os cenários urbanos, além de enveredar pelo político, a partir de imagens simbólicas”, como ele aponta.Curioso é que, mesmo sendo um trabalho de força autoral e criativa, que trazia para a fotografia brasileira uma ampliação de suas possibilidades, à época, a série não foi bem-recebida pelos seus pares, embora amplamente elogiada pela crítica. Hoje, com a fotografia expandida, a série se enriquece com uma leitura mais flexível e empática. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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