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Bonito: Maravilha aquática

Rios, cachoeiras e fontes são os maiores atrativos do lugar, que também conta com casario eclético e movimento artístico

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS KLEBER DE BURGOS

01 de Novembro de 2010

A região é cortada por quatro afluentes; em suas matas já foram identificadas 320 nascentes

A região é cortada por quatro afluentes; em suas matas já foram identificadas 320 nascentes

Foto Kleber de Burgos

As lendas correm soltas pela cidade. A mais comum, contada com bom humor pelos moradores, diz que quem bebe a água das cachoeiras, fontes ou riachos de Bonito está enfeitiçado e jamais abandona o município. O técnico ambiental Aronilson Leal Paz, recifense, 57 anos, garante ser uma das vítimas do “encantamento”. Há 26 anos, visitou a localidade, distante 134 km do Recife, onde passaria apenas alguns dias. Mas gostou tanto do que viu, que acabou ali se instalando. “Não sei se a água, não sei se o clima. Mas as belezas naturais bonitenses me fisgaram, e em hipótese alguma penso em sair daqui”, afirma o ambientalista.

Lendas à parte, é fácil se sentir atraído pelo local, situado no Agreste, na microrregião do Brejo Pernambucano. Como atesta o nome, beleza não falta à região, cujas cachoeiras foram eleitas como uma das sete maravilhas de Pernambuco, em 2007, a partir de um concurso promovido pelo Sistema Jornal do Commercio.

A pequena cidade de cerca de 40 mil habitantes conquista os visitantes por sua quietude interiorana, pelo seu casario bem-conservado, com exemplares do estilo arquitetônico eclético, por ter uma história de episódios marcantes, e contar com manifestações artísticas, sejam tradicionais ou contemporâneas.

Mas o que atrai as pessoas para Bonito é, sobretudo, seu patrimônio ambiental: montes, matas, rios, cachoeiras e fontes. São belezas naturais procuradas seja por quem deseja um dia festivo à beira das quedas d’água, o que acontece aos sábados, domingos e feriados; por quem aprecia práticas ecoesportivas radicais, em especial; ou pelos que buscam apenas um pouco de contemplação, natureza e paz.


Bonito começou a se formar no final do século 18, em terras que pertenceram ao Quilombo dos Palmares

VALE DE ÁGUAS
Bonito é um vale cercado pelo Maciço da Borborema, cadeia montanhosa que vai do Rio Grande do Norte até Alagoas. “A região é um dos remanescentes mais expressivos da Mata Atlântica no estado. Trata-se de um brejo de altitude, um pedaço da mata no meio da caatinga”, explica Aloysio Gonçalves da Costa Junior, diretor do Departamento Ambiental da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH).

Além de habitat de diversas espécies vegetais e animais, a região é riquíssima em termos hídricos, cortada por quatro afluentes, e banhada pelas bacias do rio Una e Sirinhaém. Nas matas da região, 320 nascentes já foram mapeadas. “É um dos maiores mananciais hídricos de Pernambuco”, afirma Aloysio.

O lugar, entretanto, vive constantemente ameaçado pela ocupação humana. E os sinais de deterioração são preocupantes, na opinião de Kleber de Burgos, jornalista e organizador do livro Bonito Pernambuco – História e Ecologia, lançado neste mês pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).

Durante os anos de 2007 e 2008, o jornalista especializado em meio ambiente percorreu as matas bonitenses para documentar espécies da fauna e flora locais. Ao retornar ao local no último mês de outubro, constatou que matas – nas áreas particulares – vêm sendo substituídas por plantações de subsistência. “Infelizmente, a equação para resolver esse problema é muito difícil, pois as famílias que residem no local necessitam de meios para sustentar-se. Sem uma melhor orientação e sem alternativas para sobrevivência, a cada dia vão desmatar mais”, afirma Kleber.


Marco zero da cidade, a Igreja Matriz tem como padroeira
Nossa Senhora da Conceição

Técnico ambiental e gestor nacional em meio ambiente, lotado atualmente na Prefeitura de Bonito, Aronilson Leal Paz admite que as matas bonitenses apresentam sinais de devastação. “Nas quase três décadas em que estou aqui, deixei de ver vários animais que eram observados nos anos 1980, como o lobo-guará, a ariranha e a preguiça”, aponta. Mas observa que um trabalho efetivo vem sendo realizado pelo município.

“Nos dois últimos anos, várias ações estão sendo desenvolvidas na tentativa de recuperar o que foi destruído. Trouxemos de volta a Companhia Independente de Policiamento Ambiental (Cipoma) para dentro das matas, isso tem coibido novas infrações”, diz o ambientalista, lembrando que dados do IBGE mostram que as matas bonitenses – somando as áreas públicas e privadas –, contavam com 620 hectares no ano 2000.

A solução encontrada pelas autoridades locais para conter a devastação e deflagrar o desenvolvimento sustentável está sendo apostar no ecoturismo e na legalização do patrimônio ambiental. “Regularizamos todas as áreas públicas de mata. Estamos implantando o Parque Natural Municipal Mata do Mucuri-Hymalaia, que fica a 780 metros de altura acima do mar, e tem cerca de 105 hectares de florestas disponíveis à prática de ecoturismo e recreação”, explica Adriana Pautila, diretora de Educação Ambiental da Prefeitura de Bonito. Paralelamente, diz ela, duas reservas biológicas estão sendo legalizadas, nas Matas da Chuva (174 hectares) e de Guaretama (51,30 hectares), onde a presença de visitantes é proibida e cujo acesso será permitido apenas a pesquisadores e cientistas autorizados.

O trabalho de organização e preservação das matas inclui sinalização, com placas educativas e de alerta para visitantes; treinamento de guias; e implantação de equipamentos de segurança para os turistas.


As matas bonitenses apresentam sinais de devastação e vêm sendo substituídas por plantações de subsistência

SEGUINDO AS TRILHAS
A estrutura turística de Bonito ainda é modesta, principalmente no que diz respeito aos serviços gastronômicos. Mas existem algumas boas opções de hospedagem na cidade, a exemplo do Bonito Plaza Hotel. Na área rural, além do camping do Mágico, vários hotéis oferecem pousada e estrutura para ecoturismo, entre eles o Bonito Eco Parque e o Engenho da Pedra do Rodeadouro.

No Parque Municipal, turistas poderão fazer caminhadas por várias trilhas. Mas os que desejam banhar-se nas cachoeiras deverão procurar as matas particulares. Todas as oito quedas d’água responsáveis pelo grande movimento de visitantes nos finais de semana estão em propriedades privadas – ou em áreas pertencentes a associações – o que significa, na maioria dos casos, ter que desembolsar uma pequena taxa para banhos.

Atualmente, tornou-se bem mais fácil chegar até as cachoeiras, que se encontram próximas à recém-pavimentada PE-103, estrada que corta os oito quilômetros de serra e que é conhecida como Estrada das Cachoeiras.

A mais famosa e procurada é a Véu de Noiva 1, a maior de todas, com mais de 40 m de altura. Localizada a 24 km do centro, oferece trilhas leves e estrutura para prática de rapel. A cachoeira conhecida como Barra Azul, distante 21 km da cidade, também é indicada para os que gostam de passeios radicais; seus 15 m de quedas d’água permitem a formação de piscinas naturais. Pequena e ideal para banhos com crianças, a Paraíso, a 18 km da área urbana, é a opção mais acertada para quem deseja calma e segurança. A maioria das cachoeiras de Bonito possui estrutura de lanchonete e bar.


Heron Martins trabalha aliando a tradição popular das
xilogravuras a elementos visuais contemporâneos

Os visitantes não devem se aventurar sozinhos pelas matas. Em todos os casos, afirmam as autoridades locais, é recomendável procurar a ajuda de um guia ou trilheiro. Indicações sobre profissionais podem ser repassadas pelos hotéis ou pela prefeitura municipal.

REVOLTAS E TRADIÇÕES
Bonito começou a se formar no final do século 18, entre os anos de 1783 e 1786, em terras que pertenceram, no passado, ao Quilombo dos Palmares. Doutor em História e autor de livros sobre o município, Flávio José Gomes Cabral conta que o povoado foi fundado por caçadores originários da região do rio Ipojuca, que, certo dia, ao se depararem com um riacho de água cristalina emoldurado pela serra e pela bela vegetação, teriam dado o nome de Bonito ao local.

O marco zero da cidade é a Igreja da Matriz, cuja pedra fundamental foi fixada em 1816, tendo sido finalizada em 1853 e reconstruída em 1912. Sua padroeira é Nossa Senhora da Conceição. Os que visitarem a igreja poderão observar uma imagem barroca da santa, doada em 1828 por uma tradicional família portuguesa, na tentativa de livrar a cidade da cólera que assolou o Brasil à época.

Sua autonomia política, entretanto, deu-se apenas em 20 de maio de 1833. Entre 1832 e 1836, o município seria palco da maior revolta popular da história do período regencial, quando negros, índios, homens e mulheres pobres lutaram por seus direitos na famosa Guerra dos Cabanos. Em 1848, a região do Verde, um dos sítios locais, abrigou Pedro Ivo, líder da Revolução Praieira. “As tropas imperiais invadiram as matas durante meses à sua procura”, conta Flávio Cabral.

Outro episódio marcante, já no final do século 19, deu-se com o descontentamento da comunidade diante da Lei de Pesos e Medidas. Na ocasião, em 1874, a população atacou a feira, destruiu os novos pesos, dando origem a uma das últimas rebeliões sociais da época imperial: a Revolta dos Quebra-Quilos.

Palco de tais enfrentamentos de cunho social, Bonito torna-se um local onde se evidencia o sentimento de pertencimento. “Temos um passado cheio de lutas em busca de uma sociedade mais justa. Hoje vivemos em total harmonia, mas somos muito apegados às tradições”, explica Niedja Nascimento, diretora de Cultura da prefeitura municipal.


Bem-preservado, casario reúne cerca de meia centena de exemplares típicos da arquitetura eclética do início do século 20

A maior festa da cidade é a de São Sebastião, com ápice no dia 20 de janeiro, e que acontece em volta da igreja dedicada ao santo, edificada em 1840. “É a maior festa de Bonito, atrai milhares de pessoas de outras cidades, e começa com a procissão da bandeira, que percorre as ruas e depois é hasteada. As comemorações costumam durar uma semana”, explica Niedja.

Tradição sertaneja do ciclo folclórico da Guerra do Paraguai, o folguedo dos bacamarteiros também é característico de Bonito. Com dois regimentos atuando na cidade, o 15 e o 25, a festa acontece sempre em 29 de junho, dia de São Pedro. “O nosso regimento, o 15, começou a se reunir há 103 anos, na Grota do Chico. Temos um batalhão com 50 homens, 15 mulheres e cinco crianças. Fazemos coreografia, e repassamos a tradição de pai para filho. Temos autorização do exército para o exercício. Ser bacamarteiro é amor pela tradição”, explica Rubem Alves da Silva, presidente da Associação dos Bacarmateiros da Cidade de Bonito.

DIÁLOGO CONTEMPORÂNEO
Além das tradições, chama a atenção do visitante a profusão de grafites que ocupam fachadas inteiras de casas e os latões de lixo bonitenses, seja na área urbana ou na rural. Os autores, Marcelo Júlio, 30 anos, e Heron Martins de Melo, 42, dois artistas plásticos locais, ainda não tiveram uma exposição de suas obras em galeria, mas aonde chegam, a exemplo da última edição da Fenearte, seus trabalhos causam boa impressão, ao aliar a tradição popular das xilogravuras a elementos visuais contemporâneos.

A qualidade do trabalho dos artistas locais motivou Raul Córdula a organizar uma oficina de pintura na cidade, programada para começar em dezembro e se estender até março de 2011. “Heron e Marcelo, assim como outros artistas de Bonito, mostram muito talento. Se tiverem as oportunidades que têm os artistas urbanos, certamente, despontarão”, acredita.

A montagem da oficina tem como ideia original estimular os artistas locais a passarem uma semana pintando temas sobre a cidade. “Eles serão monitorados por profissionais experientes de Pernambuco e da Paraíba, como Maurício Arraes, Plínio Palhano, Marcelo Peregrino, Manoel Claúdio, Álvaro Caldas e Antônio Mendes, entre outros”, explica Córdula, que também participará das atividades.

O casario bonitense, bem-preservado, também merece destaque e agrega interesse pelo turismo local. Apesar de não existirem ainda estudos a esse respeito, trata-se de um acervo que reúne cerca de meia centena de exemplares típicos da arquitetura eclética do início do século 20, bem ao estilo do que se pode observar nas ruas da sertaneja Triunfo. “Estamos catalogando e classificando o acervo para tentar preservá-lo”, explica o pesquisador Marco André, que vem realizando levantamento da arquitetura local.

MARCO DO SEBASTIANISMO NO NORDESTE


Localizada a nove quilômetros da zona urbana, Pedra do Rodeadouro será transformada em Monumento Natural de Bonito

Localizada a nove quilômetros da zona urbana, a Pedra do Rodeadouro, ou Rodeador – como é conhecida pela população – será transformada em Monumento Natural de Bonito, por iniciativa das autoridades municipais, apesar de estar localizada numa área particular. A preocupação em preservar o local, que faz parte da fazenda São José, e que tem 300 m de altura, pauta-se, principalmente, no fato de ter sido cenário de um importante episódio histórico nacional.

Foi no seu entorno, entre os anos de 1811 e 1820, que se instalou a primeira – e a maior – comunidade sebastianista da história brasileira, comandada pelo desertor das milícias Silvestre José dos Santos, que chegou a Bonito fugindo de Alagoas.

Autor do livro Paraíso terreal: a rebelião sebastianista na Serra do Rodeador, publicado em 2004, o historiador Flávio José Gomes Cabral diz que o episódio, desconhecido da maioria dos pernambucanos, tem características messiânicas, como Canudos, e que mesclou ritos de um catolicismo popular à espera de um rei redentor, Dom Sebastião, morto há séculos na Batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos.

Segundo registros históricos, Silvestre chegou à região entre os anos de 1811 e 1812, na companhia do cunhado Manoel Gomes das Virgens, também desertor. Juntos, fundaram o arraial designado de Reino ou Cidade do Paraíso Terreal. O acampamento contava com cerca de 150 casebres, construídos e cobertos de palha. A comunidade acreditava que Dom Sebastião retornaria, e que na sua volta os pobres enriqueceriam e os líderes da comunidade se transformariam em príncipes, saindo dali para conquistar o mundo e corrigir as desigualdades.

O local mais representativo do movimento era exatamente a pedra, que abriga furnas (espécies de cavernas) e onde, segundo a comunidade local, ouviam-se vozes humanas, manejos de armas e instrumentos tocando. O local era conhecido como Lugar do Encanto. Dali, explica Flávio, se acreditava que Dom Sebastião sairia comandando um fabuloso exército para defendê-los do mal.

Mas, ainda ressabiadas pelo movimento rebelde de 1817, as autoridades governamentais começaram a desconfiar de que na Cidade do Paraíso Terreal se maquinava uma nova revolução contra a Coroa. Na madrugada do dia 26 de outubro de 1820, a comunidade começou a ser atacada pelas tropas imperiais. Composto por mulheres e crianças, armadas de facas, pistolas, espadas, bacamartes e espingardas, o grupo defendeu seu território, enfrentando os soldados da Coroa.

De acordo com relatos apurados por Flávio Cabral, a população feminina era maior que a masculina, e as mulheres do Rodeador chegaram a ter cargos importantes na comunidade. Na madrugada do ataque das tropas, houve um massacre, que não poupou mulheres, crianças nem velhos.

“Logo que o dia amanheceu, a grande quantidade de feridos e mortos foi amontoada e incendiada, formando uma imensa fogueira”, diz Flávio. Tais imagens inspirariam o Príncipe Dom Pedro I, futuro Imperador do Brasil, ao enfatizá-las em um manifesto de 1º de agosto de 1822, dirigido à Nação, quando se expressou: “Recordai-vos, pernambucanos, das fogueiras de Bonito”. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
KLEBER DE BURGOS, fotógrafo, organizador do livro Bonito Pernambuco – História e ecologia.

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