PÉS-RAPADOS
Orgulho, porém, não enche barriga, e após a Restauração a cama da nobreza já estava feita. Além de arrasarem Olinda, os infames protestantes instruíram-se nos segredos do fabrico do açúcar e passaram a produzi-lo em larga escala nas Antilhas, abaixando seu preço no mercado internacional. O pior, para Bernardo, fora, talvez, a mudança no sistema de comércio. Nos tempos idos, os agricultores vendiam seu açúcar diretamente a quem vinha buscá-lo, mas a Companhia das Índias Ocidentais chamou para si a intermediação dos negócios. Passou a financiar os proprietários, porém reservando-lhes apenas o fabrico do produto, não lhes permitindo a comercialização. Quando ela se foi, os mascates portugueses assumiram seu posto.
Empobrecidos, descapitalizados, os grãos-senhores viram-se à mercê de uma classe inferior de gente, os galegos que vinham para cá nos porões dos navios com uma réstia de cebolas e um par de tamancos, e, aqui chegando, enricavam às suas custas, faziam-se seus credores, obrigavam-nos a viver mendigando empréstimos e protelações de pagamentos. E ainda zombavam deles pelas costas, chamando-os de “pés-rapados”... Para completar a obra, a Coroa tomara para si o controle da capitania, que passara a ser governada por um capitão-general nomeado pelo rei, tal qual as outras.
Do Alto da Sé, Bernardo mirava com raiva e com desdém o povoado aos seus pés, uma légua ao sul. Olinda, a vila mais nobre e de antiga linhagem do país, ainda possuía as vantagens que a fizeram ser escolhida como a primeira sede de Pernambuco: cenário magnífico, terreno fértil, água e vegetação em abundância. Porém, apenas parcialmente reerguida, após a destruição, nela viviam não mais que 2.500 almas. Já o vizinho plebeu se alevantava em uma ponta de areia despida de arvoredo, fétida, doentia, sem água potável, mas assumira com desembaraço o papel de maior centro de toda a região compreendida entre a Bahia e o Maranhão. Possuía mais de 12 mil habitantes e aumentava a cada dia.
O trunfo recifense era o excelente porto, “tão quieto e seguro, que para as curvas das naus serve de muro”, nos versos do poeta Bento Teixeira. Pelas estreitas aberturas nos seus arrecifes, passavam as naus e os negócios; mas por ali também entravam a mesquinhez, a rudeza e o mau gosto burgueses, que ameaçavam se apoderar da aristocrática civilização cultivada nos morros olindenses, e subjugá-la – o que, no fundo, era o maior temor do capitão.
O único escudo dos nobres, sua tábua de salvação, era o status de capital da província que eles conseguiram recuperar para Olinda em 1657 – contra a vontade da Coroa –, depois de ele ter ficado por quase três décadas no Recife, no período holandês. E também a sua Câmara, às vezes chamada de Senado, que ainda possuía algum poder de intervenção nas decisões políticas, na qual só se assentavam homens “bons”, os da sua estirpe. Os mascates não ousavam se fazer representar, embora possuíssem esse direito. Mas, em conluio com o governador, Sebastião de Castro Caldas, após anos de demandas em Lisboa, e de muitas tramoias e negociatas ao pé do Trono, os portugueses conseguiram finalmente o status de “vila” para o povoado onde viviam e tinham seus negócios. E, imediatamente, à socapa, na calada da noite, ergueram o pelourinho do Recife, símbolo da autonomia municipal, e criaram sua própria Câmara, proclamando-se livres da tutela olindense.
D. João V determinou que os líderes do movimento fossem enviados a Lisboa.
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Ah, mas isso, a nobreza da terra jamais admitiria! Os mascates não podiam ficar sem nenhum controle! Valentia e experiência militar para enfrentá-los, eles possuíam, herdadas do passado e exercidas no presente: Bernardo, por exemplo, servira como lugar-tenente de Domingos Jorge Velho, na expedição que pusera fim ao poderoso Quilombo dos Palmares. Histórico de confrontos com a Coroa, também havia. Não tinham despachado de volta para Lisboa, em 1666, jungido em ferros, um maldito governador – Jerônimo de Mendonça Furtado, o “Xumbergas” – famoso pelos bigodes imensos e pela canalhice, tanto que a expressão “xumbregar” virou sinônimo de fazer safadeza? Não impuseram, daquela vez, sua vontade ao Rei, que se dobrou às exigências pernambucanas sem tugir nem miar? Pois fariam o mesmo com essa outra alma de lama, o Castro Caldas, e desmanchariam aquele terrível malfeito. Ou, então, iriam à guerra!
EXIGÊNCIAS E MASSACRE
A primeira reação dos nobres foi invadir o Recife e mandar 12 homens pôr abaixo o novo pelourinho. Também libertaram os presos da cadeia e rasgaram o Foral Régio. O governador fugiu para a Bahia. E, no dia 10 de novembro de 1710, eles tiveram uma longa reunião na sua Câmara, presidida por Bernardo, na qual estabeleceram 15 exigências a serem feitas a Portugal, entre elas o direito de comerciar diretamente com naus estrangeiras aqui arribadas, a não execução por dívidas dos senhores de engenho, e o perdão geral para os envolvidos no movimento. Caso esses “capítulos” não fossem aceitos, as alternativas poderiam ser a submissão da capitania à França, já cogitada no início da invasão holandesa, quando o Rei vacilou em apoiá-los; ou, até mesmo, o estabelecimento, aqui, de uma república nos moldes venezianos ou dos Países Baixos, os modelos disponíveis na época. Isso se veria depois.
Antes de chegar resposta de Lisboa, contudo, os mascates contra-atacaram, e a luta se estendeu a outras freguesias, causando centenas de mortos e feridos, além de grandes prejuízos. Um ano depois, arribou o novo governador, Félix Machado, com propostas de paz e de perdão para os revoltosos, nas quais Bernardo e os seus acreditaram, movidos pelo desejo de nelas acreditar. Mas as reais intenções do galego eram outras, pois aquele levante fora entendido pelo Conselho Ultramarino não só como gravíssimo, porém o maior já ocorrido no seio da nação portuguesa! Machado foi manobrando sutilmente de forma a isolar e desarmar os nobres, e, quando se viu em condições, mostrou a que realmente viera.
As prisões começaram em 1712, feitas por ajuntamentos de índios e negros, para vilipendiar ainda mais os rebeldes. Os de negros, chamados de tunda-cumbés, expressão angolana que significa “tortos de corpo e de cabeça”, eram especialmente cruéis com seus antigos donos, para se vingar do tratamento deles recebidos. Humilhavam e torturavam até mesmo velhos, mulheres e crianças. O terror perdurou até 1714, quando a Coroa determinou a libertação dos presos sem culpa formada e o envio dos cabeças da revolta para Lisboa. Bernardo Vieira de Melo e seu filho André estavam entre esses últimos, e ambos morreriam na prisão do Limoeiro, devido aos maus tratos, antes de serem julgados.
Assim foi esmagado o orgulho dos nobres olindenses. Da guerra levada por eles contra os mascates restaria, como herança, o acirramento do ódio aos europeus, que de novo se manifestaria nos movimentos patrióticos pernambucanos de 1802, 1817 e 1821, e mesmo após a independência, em 1824 e 1848. Muito bem-traduzido, aliás, na recomendação de Leonardo Bezerra, um dos presos em 1712, que ficaria encarcerado por 13 anos: “não corteis um só quiri das matas, tratai de poupá-los para, oportunamente, quebrarem-se nas costas dos portugueses”.
PAULO SANTOS DE OLIVEIRA, jornalista e escritor.