FOTOS MAÍRA GAMARRA
01 de Outubro de 2010
Antigo trecho de engenho, a rua de Apipucos apresenta uma subida com casas que saltam à paisagem verde e desembocam na igreja matriz do bairro
Foto Maíra Gamarra
"Se há um paraíso na terra, é aqui.” Foi essa a frase, citada por Gilberto Freyre em Apipucos: que há num nome?, que o embaixador britânico Leslie Fry utilizou, em 1962, para descrever seu encanto diante da arborizada vila açucareira de Apipucos. Mirando o açude, a igreja matriz e a pracinha, elementos marcantes do atual bairro de classe média alta, a admiração do Sir Fry se estendeu à linha contínua de casas que colorem e sugerem uma atmosfera bucólica ao local, situado na Zona Norte do Recife. Onde quer que se encontrem, as casas conjugadas, de porta e janela, geminadas ou de meia-morada conferem um ar provinciano à paisagem, sendo tipologias predominantes na constituição das cidades brasileiras nos séculos 17 e 18.
Centros históricos – como a mineira Ouro Preto, São Luís do Maranhão e Olinda, em Pernambuco – abrigam quarteirões repletos delas, que facilmente se tornam cartões-postais em registros turísticos. Caracterizada basicamente por ter uma de suas paredes em comum, a construção dessas casas sofre declínio a partir do século 19, e a razão para esse fato não se limita apenas à inserção das tendências arquitetônicas modernas, como o ecletismo ou a art nouveau, mas envolve aspectos da lógica social-urbana vivenciada no período. “Quando as demandas modernas começam a surgir, tais como a proliferação dos direitos individuais na sociedade e novas dinâmicas no núcleo familiar, as casas sofrem uma série de alterações, criando-se na construção civil a necessidade de espaçamento entre residências, que passam a ser construídas isoladamente umas das outras”, afirma o arquiteto Luiz Amorim, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE.
O bairro da Torre possui exemplares de casas conjugadas que
lhe conferem um ar provinciano
Devido à superproteção do núcleo familiar, a estrutura interna das casas de porta e janela apresentava aposentos pequenos, as chamadas alcovas, ambientes insalubres que não possuíam janelas e eram favoráveis à alta umidade. Aos poucos, recursos arquitetônicos como as gelosias e os muxarabis – painéis de herança árabe constituídos por treliças de madeira – foram sendo utilizados com o objetivo de permitir a discreta iluminação e ventilação dos cômodos, recurso bastante utilizado na arquitetura colonial como forma de proteger as moças de família do olhar externo. Além do aspecto de proteção familiar, havia o medo de doenças, que proliferavam no espaço urbano devido ao precário sistema de saneamento; além de práticas indevidas, como o enterro de pessoas em igrejas e o fato de os dejetos humanos serem jogados nos rios e mangues da cidade. “O pensamento sanitarista que irá se desenvolver no século 19 passa a ser apropriado pela arquitetura e pelo urbanismo, e isso vai repercutir tanto na mudança de práticas quanto na disposição interna e externa das casas. O uso de estruturas que permitam a circulação do ar e a entrada dos raios solares passa a funcionar, inclusive, como efeito bactericida contra a umidade”, pontua Amorim.
No entanto, ao longo dos anos, não houve a completa extinção desse tipo de morada, e, sim, adaptações, como a busca por condições de salubridade e terrenos mais largos. Na legislação do Recife, no início do século 20, exigências foram feitas para minimizar os efeitos da alta umidade: a elevação do piso das casas – gerando o porão alto –, o afastamento do terreno lateral e, posteriormente, o da frente, criando o quintal e o jardim. “Os terrenos das casas contínuas passam a aumentar de, aproximadamente, três a sete metros, levando em consideração a condição econômica da família”, afirma o arquiteto.
Os bairros do Poço da Panela e de Apipucos preservam as
moradas de porta e janela
O artista plástico Abelardo da Hora é um dos que se mantiveram como moradores de casas de meia-morada. Situada na rua do Sossego, no bairro central da Boa Vista, no Recife, sua casa é uma das únicas que permanecem como residências, uma vez que a maioria das vizinhas é atualmente ocupada por clínicas, sindicatos e comércio. “Não é mais aquela coisa maravilhosa de antes. Tive sete filhos, e minha casa era cheia de meninos o tempo todo. Era uma convivência mais saudável que nos apartamentos de hoje em dia. A família se estendia pelas outras casas, tenho saudades daquele tempo”, afirma o artista, que mora ali há 50 anos.“É um mal para as cidades não preservar essas obras arquitetônicas, porque elas contam a história do Estado. A sede e a loucura das construtoras são uma coisa fora do comum”, comenta ele.
NOVOS USOS
Dadas as transformações ocorridas com a modernização, as casas de porta e janela passaram a ser encaradas como soluções arquitetônicas aliadas às políticas públicas, tendo relevância aspectos econômicos, como o menor gasto de materiais e maior aproveitamento dos terrenos. Alguns conjuntos de casas foram construídos ainda no governo de Agamenon Magalhães, através da iniciativa da Liga Social Contra o Mocambo, em 1939, cujo objetivo era combater esse tipo de construção precária, estimulando a produção de conjuntos habitacionais populares. Foram comuns projetos de vilas destinadas a profissões “não organizadas”, como a dos operários, no bairro da Torre, a dos comerciários, em Casa Amarela, e das lavadeiras, em Areias, localizadas na Zona Norte do Recife. Dos anos 1950 para cá, arquitetos como Delfim Amorim, Armando de Holanda e Glauco Campelo também planejaram conjuntos que mantinham a lógica de proximidade, utilizada mais uma vez nos anos 1970, no Brasil, pelas Companhias Habitacionais (Cohabs).
“Viver em casas exíguas, de porta e janela, exige do morador contemporâneo uma série de adaptações. Existe certa incompatibilidade entre a organização espacial original dessas casas e a praticidade exigida pela maioria dos moradores atuais”, pontua Luiz Amorim.
Na Vila dos Comerciários, a solução arquitetônica foi geminar
e sobrepor residências, permitindo que cada uma tivesse acesso
à rua por entradas independentes
Ao mesmo tempo em que se projeta o desenvolvimento das cidades, há certa dificuldade da sociedade em adaptar-se à lógica de metrópole: “A verticalização das cidades é uma realidade mundial. Em algumas tipologias de conjuntos populares, como os constituídos por prédios, percebe-se a busca pelo modelo de lar, de casa; por essa razão, muitos moradores procuram modificar os espaços oferecidos, na tentativa de maior contato com a rua. Fica evidente que não se pode colocar famílias numa tipologia de morada incompatível com o estilo de vida anterior”, afirma a engenheira civil Edinéia Alcântara.
Moradora do bairro de Apipucos, a engenheira ressalta a importância de se viver num local privilegiado da cidade: “É um lugar que tem história, é bucólico, tem poesia. Nos edifícios em que morei, custava para ter plantas na varanda. Agora, cultivo um jardim, e abri uma parte no teto para que as plantas sejam aguadas diretamente pela chuva”. Uma série de modificações foi feita na sua casa, de aproximadamente 100m2: uma varanda no quarto superior, o jardim, a troca do telhado por laje e um banco na frente de casa: “Tem quem goste de apartamento alto, marmorizado, mas muita gente quer voltar para as casas propriamente ditas. Uma das vantagens é ter essa plasticidade, você praticamente molda seu hábitat”, opina.
O artista plástico Abelardo da Hora dispõe suas esculturas e gravuras no corredor extenso de sua residência
RIBEIRINHO
Outro lugar que transmite uma atmosfera bucólica como a descrita por Edinéia Alcântara é o Poço da Panela, também situado na Zona Norte do Recife. Próximo ao bairro de Casa Forte, ele marca parte da história pernambucana, tendo seu vilarejo pertencido ao antigo Engenho de Ana Paes, local de batalhas do período holandês, como a de 17 de agosto de 1645, que renomeou o Engenho e o bairro de Casa Forte. Sua via principal de acesso, a Estrada Real do Poço, tombada pelo Patrimônio Histórico, abriga o conjunto residencial da Inabi, construído em meados dos anos 1960. Algumas das casas desse conjunto, que são duplex e conjugadas, apresentam um oitão livre para a garagem, fornecendo um arranjo de conjunto residencial à sequência de casas.
Apesar de apresentar esse modelo contemporâneo de habitações conjugadas, o bairro reúne um importante acervo de casarões, sobrados e casas de porta e janela datados do período colonial, que vem sendo ao longo da história habitado por classes sociais distintas. Quando era povoado por lavadeiras e famílias ribeirinhas, que tinham nas travessias de barco pelo Rio Capibaribe seu principal meio de locomoção, o Poço da Panela apresentava complexos arranjos conjugados e sobrepostos de mocambos próximos à Igreja Nossa Senhora da Saúde, também tombada pelo Patrimônio Histórico.
O poeta recifense Olegário Mariano escreveu, em uma de suas liras, sobre a sensação que o bairro passaria aos visitantes: “Num remanso bucólico e sombrio/ Onde atenua a marcha o grande rio,/ Batem roupa, cantando, as lavadeiras./ Trago ainda nos olhos: é bem ela,/ A paisagem do Poço da Panela”.
RAQUEL MONTEATH, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
MAÍRA GAMARRA, fotógrafa.