Num ensaio de 1941 (O isolamento da poesia moderna), Delmor & Schwartz debruçavam-se sobre o desprestígio dos poetas nos EUA, e diziam ser dos próprios poetas a parcela maior de culpa: “Não se trata da simples questão de não ter o poeta uma plateia, pois isso é um efeito, e não uma causa, da natureza da poesia moderna”.
Trocando em miúdos: para a dupla de ensaístas, a obscuridade da “nova poesia” havia afastado os leitores. Matizando a questão, o respeitado Randall Jarrell, numa conferência pronunciada em Harvard, preferia culpar a cultura pós-moderna: “O poeta do nosso tempo vive num mundo cujos jornais e revistas, livros e filmes, estações de rádio e estações de televisão destroem em inúmeras pessoas até mesmo a capacidade de entender poesia real, arte real de todo tipo”.
A essa altura, é preciso lembrar ao leitor que, com o desenvolvimento da teoria romântica nos séculos 18 e 19, nós veríamos avançar pela 20ª centúria a tendência – bem-examinada pelo crítico Yvor Winters – de “suprimir o racional na poesia e, tanto quanto possível, neutralizar igualmente o emocional”. Grande poeta inglês, Philip Larkin radicalizou tal ponto de vista, ao acusar a “aberração do Modernismo”, que teria “envenenado – nas suas palavras – todas as artes”.
No poema À procura da poesia, Carlos Drummond de Andrade
distingue os verdadeiros poetas dos amadores. Foto: Divulgação
Para mim, a questão excede as práticas literárias modernas, e poderia ser pressentida já ao tempo em que um poeta-mestre venerável como Walt Whitman ressaltava, no final do século 19, que “para se ter (grandes) poetas há que se ter também grandes públicos”. Tudo bem, porém seria possível ver tal impasse pela lente invertida, conforme o fez Karl Shapiro, preocupado com a perda de excelência: “Talento poético verdadeiro é muito raro, mesmo nas melhores épocas, e as plateias não costumam reconhecê-lo de imediato”.
Onde estariam, hoje, esses talentos verdadeiros e/ou raros, entre os poetas?
Paradoxalmente, há tal abundância de (má) poesia na internet, por exemplo, que a rarefeita “superioridade”, aqui, desaparece sob a maré da banalidade a sugerir o efeito perverso da contrafação: leitores se afastam do que abunda na cara deles.
Mesmo na área da poesia impressa, talvez fosse oportuno recordar que, já em 1978, um jornal importante como o Los Angeles Times anunciava que iria deixar de apresentar resenhas de livros de poemas, simplesmente pelo fato de ser impossível dizer quais eram os importantes. Duas décadas antes, a voz – sempre altissonante – de Edmund Wilson trazia a questão para o centro do ensaio É o verso uma técnica agonizante?. Wilson olhava em torno, na América pós-Poe, e lamentava não divisar “nenhum portento realizando o melhor de sua obra em versos”, embora ressaltasse que Robert Frost havia caminhado para escrever poemas que, em sua essência, “eram quase tão narrativos como os romances preferidos pelo leitor norte-americano médio”.
CONTEÚDO NOVELESCO
Não só os americanos se preocuparam, criticamente, com o declínio da audiência para a forma poética. Entre os italianos, Pier Paolo Pasolini apontou diretamente para os efeitos do que ele chamava de ditadura do “fascismo da cultura de massa”, sem apresentar soluções outras senão a do desespero que chegou, no seu cinema, ao sem-saída de Salò – os 100 dias da Sodoma, enfiada na Gomorra da gangorra do tempo: quantidade violentando a qualidade encurralada na vulgaridade brutal de nossa época.
Em termos estritamente de poesia, coube ao espanhol Dámaso Alonso acenar com uma nesga de “solucionática” (para citar o poeta “Dadá Maravilha”): seria a de retornarmos ao poema narrativo. Nesse tipo de poema – necessariamente longo – haveria, ou teria que haver, uma espécie de “contenido novelesco”, nos termos colocados por Alonso: “Tal contenido é o que atrai o hoje hegemônico leitor de romances, reforçado pela força também narrativa do cinema”. Alonso sugeria pelo menos a tentativa de conquistar esse leitor, para a poesia, pelo retorno ao fio narrativo através do qual se “desnovelara”, no tricô inicial da literatura, uma Ilíada, uma Divina comédia, um Paraíso perdido e outras obras magnas, todas de conteúdo “novelesco”.
Como poeta, eu próprio optei por tal caminho no livro Vi uma foto de Anna Akhmátova (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009). Nele, um banal acontecimento desencadeia a longa narrativa em versos: alguém descobre, numa antologia da moderna poesia russa, uma foto da Akhmátova, investigada como se estivesse no centro de algum mistério, exigindo a decifração transformada emweltanschauung ou visão de mundo.
Com ou sem uma possível volta à narratividade, o poeta laureado Donald Hall nos elucida mais cinicamente sobre a rejeição de poesia, pelo menos na sua geração americana: “Depois do curso superior, muitas pessoas deixam de ler poesia contemporânea. Por quê? Envolvem-se em suas atividades profissionais e se afastam gradualmente do Templo do Verso. Anos depois, olhando com atraso para o cenário poético, dizem-nos que a poesia está morta. Elas é que abandonaram a poesia, porém acusam-na de havê-las abandonado. Na verdade, elas lamentam o seu próprio envelhecimento. Não o fazemos todos? Só que alguns de nós não culpam os poetas”.
Era um recado direto para o eminente crítico Joseph Epstein, que havia acabado de publicar o polêmico ensaio Who killed poetry?. E Hall concluía, em clima otimista: “Enquanto a maioria dos leitores e dos poetas concorda que ‘ninguém lê poesia’ (e todos nos aquecemos com o fogo gregário de nossa arte solitária), uma multidão de ninguéns começa a reunir o grande público que Walt Whitman procurava”.
No começo da década de 1990, isso referia o resto da “maioria silenciosa” – hoje nem tão silenciosa assim, no “sem-fronteiras” da internet. Provavelmente, virá a ser dessa a última palavra sobre a sobrevivência da poesia no mundo inteiro, pois é no nicho virtual que o verso está entrincheirado atualmente, embora na massa informe dessa terra de ninguém em que afundam poetas verdadeiros confundidos com poetastros amadores esquecidos da sábia advertência de Carlos Drummond de Andrade (no poema Procura da poesia): “Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia./ Diante dela, a vida é um sol estático,/ não aquece nem ilumina./ As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam./ Não faças poesia com o corpo,/ esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica./ Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro/ são indiferentes./ Nem me reveles teus sentimentos,/ que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”.
O grifo é nosso. E os versos de CDA prosseguem, o poeta de Itabira a dizer o que precisa ser dito para que possamos ainda dar o “viva” à poesia (como na resposta ao grito “O rei está morto! Viva o rei!”), velha arte subsistindo, apesar de tudo, não só como fundamento das outras, mas talvez se preparando para assistir, quem sabe, às exéquias de todos que, nesta hora, voltam-lhe as costas como leitores, ou apresentam-lhe as deformadas corcundas de editores dobrados sob o peso do Mercado, a esfinge que nos devora enquanto a deciframos (Ó, bravo e saudoso Editor Massao Ohno!, a quem este texto é dedicado).
FERNANDO MONTEIRO, escritor.