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A poesia está morta? Viva a poesia!

Hoje, o Brasil não apresenta poetas em listas de vendagens de nenhum tipo. Segundo os editores, poemas não vendem

TEXTO Fernando Monteiro

01 de Outubro de 2010

Foto Maíra Gamarra e Rafa Medeiros

São mais de 10 mil os poetas brasileiros em atividade neste momento. O número exato vai sendo atualizado pela carioca Leila Míccolis, numa espécie de censo, digamos, “poeternético”, no portal de literatura e cultura Blocos on Line.

“É muuuito poeta”, diria o desprezo intenso de nossa perplexidade. Apesar disso, as editoras do Brasil fogem de poesia como o diabo foge da cruz. Para elas, “livro de poesia” é algo indigesto, azarento e – numa palavra – maldito, porque “poesia não vende”, segundo a sentença unânime dos editores (mesmo que alguns nunca tenham experimentado incluir poetas nos seus catálogos de autores). Falsamente pesarosos, eles costumam balançar a cabeça, como se estivessem de fato lamentando: “Poemas, amigo, não vendem m-e-s-m-o”.

Sequer para a metade da metade (dois mil, quinhentos e trinta e poucos) dos poetas recenseados pela paciente Míccolis?...

A lista, algo telefônica, de Leila com certeza não esgota o universo da população lírica e/ou épica deste país de Lula. Devem existir ainda mais bardos do que a moça até agora conseguiu diligentemente pesquisar (com direito às respectivas siglas dos Estados, no caso de homônimos), a partir dos poemas – publicados – que chegaram ao seu conhecimento. Suponhamos, então, que seria de boa dedução estatística estimar que um bom número de bardos fique de fora da surpreendente listagem. Seja como for, pelo menos maracanamente falando, os 10 mil poetas juntos não decepcionariam em qualquer estádio de futebol – a paixão, maiúscula por excelência, dos brasileiros aparentemente desapaixonados da poesia escrita para além das pernas tortas dos Garrinchas de hoje.

Versos tortos ou certos, metrificados ou “livres”, longos ou curtos, nada disso – dá-se como certo – nem minimamente parece ser do interesse atual da minoria que compra livros, cá em Pindorama. Então, é chegada a hora de perguntar: aconteceu alguma coisa com a poesia? Ela perdeu importância? Alguma vez já a teve? O bonde da história literária teria atropelado os vates gauches na vida?

Na contramão disso, sabemos que versos como os do paraibano Augusto dos Anjos seguem ressoando na memória popular, através de estrofes que são quase “mantras” decorados pelos bairros do vício lírico do Brasil profundo. E o nosso amor pelos Castros Alves dos navios negreiros – e outros barcos bêbados – de quando em vez emerge do mar que não estaria para peixe, na praia da poesia. Até bem pouco tempo, um velho senhor com copo de uísque na mão (Vinicius de Moraes, plural até no nome), era chamado de Poetinha, carinhosamente, e vivia cercado de belas mulheres, além da admiração de todos iguais a você (que-maravilha-viver), quando ainda não havíamos penetrado neste áspero país que agora despejou os coleguinhas de Vinicius das estantes e gôndolas das megastoresda vida.

É claro que continuamos a encontrar poetas em todas as esquinas (sem falar dos repentistas, que estão noutro patamar de recepção). O problema não é encontrá-los “ao vivo”, mas achar – agulha no palheiro – quem os edite, regular e teimosamente, para leitores alegadamente interessados noutros gêneros de literatura.

A poesia estaria morrendo, antes do livro (vir a) morrer? Ou nós é que estamos assassinando algo associado aos versos, dentro do peito capaz de pulsar ao ritmo deles, até há pouco tempo?

Poeta requintado – se não algo hermético nas metáforas –, o americano naturalizado inglês T. S. Eliot, no segundo semestre de 1981, estava sendo lido amplamente entre nós, com a primeira edição de uma antologia da sua poesia metafísica esgotada no primeiro mês do lançamento (o que a fez entrar para a lista dos “mais vendidos” da revista Veja de 12 de agosto daquele ano).

Quase 30 anos depois, o Brasil literário pós-Paulo Coelho não apresenta poetas em listas de vendagens de nenhum tipo. Há um mistério qualquer aí. Vamos, então, voar um pouquinho para fora da “taba”, a fim de ver se dá para entender por que a poesia tornou-se a gata borralheira entre todos os gêneros de consumo menos ou mais imediatos, nas megalivrarias rendidas ao novo deus Moloch: o Mercado supremo sobre todas as coisas.

ISOLAMENTO DA POESIA?
Num ensaio de 1941 (O isolamento da poesia moderna), Delmor & Schwartz debruçavam-se sobre o desprestígio dos poetas nos EUA, e diziam ser dos próprios poetas a parcela maior de culpa: “Não se trata da simples questão de não ter o poeta uma plateia, pois isso é um efeito, e não uma causa, da natureza da poesia moderna”.

Trocando em miúdos: para a dupla de ensaístas, a obscuridade da “nova poesia” havia afastado os leitores. Matizando a questão, o respeitado Randall Jarrell, numa conferência pronunciada em Harvard, preferia culpar a cultura pós-moderna: “O poeta do nosso tempo vive num mundo cujos jornais e revistas, livros e filmes, estações de rádio e estações de televisão destroem em inúmeras pessoas até mesmo a capacidade de entender poesia real, arte real de todo tipo”.

A essa altura, é preciso lembrar ao leitor que, com o desenvolvimento da teoria romântica nos séculos 18 e 19, nós veríamos avançar pela 20ª centúria a tendência – bem-examinada pelo crítico Yvor Winters – de “suprimir o racional na poesia e, tanto quanto possível, neutralizar igualmente o emocional”. Grande poeta inglês, Philip Larkin radicalizou tal ponto de vista, ao acusar a “aberração do Modernismo”, que teria “envenenado – nas suas palavras – todas as artes”.


No poema À procura da poesia, Carlos Drummond de Andrade
distingue os verdadeiros 
poetas dos amadores. Foto: Divulgação

Para mim, a questão excede as práticas literárias modernas, e poderia ser pressentida já ao tempo em que um poeta-mestre venerável como Walt Whitman ressaltava, no final do século 19, que “para se ter (grandes) poetas há que se ter também grandes públicos”. Tudo bem, porém seria possível ver tal impasse pela lente invertida, conforme o fez Karl Shapiro, preocupado com a perda de excelência: “Talento poético verdadeiro é muito raro, mesmo nas melhores épocas, e as plateias não costumam reconhecê-lo de imediato”.

Onde estariam, hoje, esses talentos verdadeiros e/ou raros, entre os poetas?

Paradoxalmente, há tal abundância de (má) poesia na internet, por exemplo, que a rarefeita “superioridade”, aqui, desaparece sob a maré da banalidade a sugerir o efeito perverso da contrafação: leitores se afastam do que abunda na cara deles.

Mesmo na área da poesia impressa, talvez fosse oportuno recordar que, já em 1978, um jornal importante como o Los Angeles Times anunciava que iria deixar de apresentar resenhas de livros de poemas, simplesmente pelo fato de ser impossível dizer quais eram os importantes. Duas décadas antes, a voz – sempre altissonante – de Edmund Wilson trazia a questão para o centro do ensaio É o verso uma técnica agonizante?. Wilson olhava em torno, na América pós-Poe, e lamentava não divisar “nenhum portento realizando o melhor de sua obra em versos”, embora ressaltasse que Robert Frost havia caminhado para escrever poemas que, em sua essência, “eram quase tão narrativos como os romances preferidos pelo leitor norte-americano médio”.

CONTEÚDO NOVELESCO
Não só os americanos se preocuparam, criticamente, com o declínio da audiência para a forma poética. Entre os italianos, Pier Paolo Pasolini apontou diretamente para os efeitos do que ele chamava de ditadura do “fascismo da cultura de massa”, sem apresentar soluções outras senão a do desespero que chegou, no seu cinema, ao sem-saída de Salò – os 100 dias da Sodoma, enfiada na Gomorra da gangorra do tempo: quantidade violentando a qualidade encurralada na vulgaridade brutal de nossa época.

Em termos estritamente de poesia, coube ao espanhol Dámaso Alonso acenar com uma nesga de “solucionática” (para citar o poeta “Dadá Maravilha”): seria a de retornarmos ao poema narrativo. Nesse tipo de poema – necessariamente longo – haveria, ou teria que haver, uma espécie de “contenido novelesco”, nos termos colocados por Alonso: “Tal contenido é o que atrai o hoje hegemônico leitor de romances, reforçado pela força também narrativa do cinema”. Alonso sugeria pelo menos a tentativa de conquistar esse leitor, para a poesia, pelo retorno ao fio narrativo através do qual se “desnovelara”, no tricô inicial da literatura, uma Ilíada, uma Divina comédia, um Paraíso perdido e outras obras magnas, todas de conteúdo “novelesco”.

Como poeta, eu próprio optei por tal caminho no livro Vi uma foto de Anna Akhmátova (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009). Nele, um banal acontecimento desencadeia a longa narrativa em versos: alguém descobre, numa antologia da moderna poesia russa, uma foto da Akhmátova, investigada como se estivesse no centro de algum mistério, exigindo a decifração transformada emweltanschauung ou visão de mundo.

Com ou sem uma possível volta à narratividade, o poeta laureado Donald Hall nos elucida mais cinicamente sobre a rejeição de poesia, pelo menos na sua geração americana: “Depois do curso superior, muitas pessoas deixam de ler poesia contemporânea. Por quê? Envolvem-se em suas atividades profissionais e se afastam gradualmente do Templo do Verso. Anos depois, olhando com atraso para o cenário poético, dizem-nos que a poesia está morta. Elas é que abandonaram a poesia, porém acusam-na de havê-las abandonado. Na verdade, elas lamentam o seu próprio envelhecimento. Não o fazemos todos? Só que alguns de nós não culpam os poetas”.

Era um recado direto para o eminente crítico Joseph Epstein, que havia acabado de publicar o polêmico ensaio Who killed poetry?. E Hall concluía, em clima otimista: “Enquanto a maioria dos leitores e dos poetas concorda que ‘ninguém lê poesia’ (e todos nos aquecemos com o fogo gregário de nossa arte solitária), uma multidão de ninguéns começa a reunir o grande público que Walt Whitman procurava”.

No começo da década de 1990, isso referia o resto da “maioria silenciosa” – hoje nem tão silenciosa assim, no “sem-fronteiras” da internet. Provavelmente, virá a ser dessa a última palavra sobre a sobrevivência da poesia no mundo inteiro, pois é no nicho virtual que o verso está entrincheirado atualmente, embora na massa informe dessa terra de ninguém em que afundam poetas verdadeiros confundidos com poetastros amadores esquecidos da sábia advertência de Carlos Drummond de Andrade (no poema Procura da poesia): “Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia./ Diante dela, a vida é um sol estático,/ não aquece nem ilumina./ As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam./ Não faças poesia com o corpo,/ esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica./ Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro/ são indiferentes./ Nem me reveles teus sentimentos,/ que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”.

O grifo é nosso. E os versos de CDA prosseguem, o poeta de Itabira a dizer o que precisa ser dito para que possamos ainda dar o “viva” à poesia (como na resposta ao grito “O rei está morto! Viva o rei!”), velha arte subsistindo, apesar de tudo, não só como fundamento das outras, mas talvez se preparando para assistir, quem sabe, às exéquias de todos que, nesta hora, voltam-lhe as costas como leitores, ou apresentam-lhe as deformadas corcundas de editores dobrados sob o peso do Mercado, a esfinge que nos devora enquanto a deciframos (Ó, bravo e saudoso Editor Massao Ohno!, a quem este texto é dedicado). 

FERNANDO MONTEIRO, escritor.

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