FOTOS VLÁDIA LIMA
01 de Setembro de 2010
A feira de Casa Forte acontece há sete anos, abrigando 44 famílias de Goiana, Rio Formoso, Vitória de Santo Antão, Pombos e Chã Grande
Foto Vládia Lima
Ainda é madrugada de sábado quando a movimentação começa. Por volta de 1h, os produtores de cinco municípios pernambucanos – Chã Grande, Bom Jardim, Gravatá, Abreu e Lima e Vitória de Santo Antão – chegam à rua Souza de Andrade, no bairro das Graças, zona norte do Recife, para iniciar a montagem da feira. Às 2h, já aparecem os primeiros clientes, mas o pico do movimento é das 4h às 6h. Às 10h, os agricultores já se preparam para regressar.
Parece a rotina de uma feira qualquer, mas aqui o foco é outro: apenas orgânicos estão à venda. Há 13 anos, o Espaço Agroecológico das Graças reúne produtores e clientes para comercialização direta de alimentos livres de agrotóxicos e fertilizantes químicos. Foi o primeiro espaço para isso em Pernambuco – agora, pelos cálculos do agricultor Jones Severino Pereira, de Abreu e Lima, o Estado conta com quase 80.
O lado social da feira também entra na conta. É comum ver clientes que chegam cedo e ficam horas por lá, jogando conversa fora, quase como numa confraria. O engenheiro José Neto, que há 11 anos frequenta o lugar, diz que é comum pegar um produto em uma barraca, seguir comprando em outras e pagar depois, ao fim da feira: “É uma relação de confiança e amizade”.
Para o agricultor Rafael Justino Braz, de Bom Jardim, participar da feira resultou na mudança da qualidade de vida. Como a venda acontece sem intermediários, o ganho econômico é maior. No espaço, desde sua inauguração, ele passou por uma mudança radical de hábitos: seus pais trabalhavam com monocultura e ele usava queimada para limpar as terras. Hoje, seu terreno de 10 hectares está completamente recuperado.
Coordenador da Associação de Agricultores e Agricultoras Agroecológicos de Bom Jardim (Agroflor), Braz vende frutas e hortaliças e explica que os produtores fornecem alimentos para fazer parte da merenda das escolas do município, melhorando também a alimentação dos próprios filhos. “No início da feira, as pessoas ainda não conheciam os orgânicos. Era uma coisa nova. Com a divulgação na mídia, isso mudou”, afirma.
Não são apenas os produtos in natura que fazem sucesso no local. A barraca de Jones Severino Pereira é ponto de encontro por causa dos lanches variados e da simpatia do dono. Aqui, a banana vira bolo, chips ou doce em calda, pastoso ou de corte. Há também pães, pastéis de forno em sabores, como fruta-pão e jaca e sucos de açaí com limão ou de capim santo. Ele vê vantagens no beneficiamento por agregar valor, durabilidade e diversidade.
Desde 1994, trabalha com agrofloresta, sistema de plantação na mata nativa, geralmente de leguminosas, grãos e frutíferas. Um dos fundadores da feira, ele assistiu à verdadeira novela que foi sua implantação. Ela teve início no Parque da Jaqueira, depois se mudou para a Praça Elvira Souza, no fim da rua onde fica atualmente, mas foi retirada de lá. Segundo Pereira, quem apoiou a causa foi o ex-prefeito João Paulo, macrobiótico de carteirinha.
A coordenação é feita pelos próprios agricultores, que criaram um regimento, realizam assembleias periódicas e se preocupam com o controle de qualidade dos produtos. Do início da feira para cá, ele percebe que o público está cada vez maior e mais diversificado. “São pessoas que estão investindo na vida. Para um público de classe média alta vir à feira às 3h, devemos ter um diferencial”, afirma.
PREÇO TABELADO
Quem não conhece bem os orgânicos, pode vê-los apenas como alimentos mais mirrados e caros que os comuns. Não é o que se verifica nas feiras: além de viçosos, os produtos apresentam preços competitivos. O técnico agrícola Marcelino Bezerra de Lima diz que isso acontece porque os valores são tabelados para o ano inteiro. Depois de fazer uma pesquisa no comércio e em outros estados, eles definem o preço mínimo e máximo, o que evita variações na entressafra. Por isso, ele afirma que até pessoas de baixa renda vêm se tornando consumidoras de orgânicos. Quanto ao visual dos alimentos, eles só ficam feios quando não recebem bom manejo ou estão fora de época. Para evitar isso, os produtores são assessorados pela ONG Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá.
Agente de comercialização da feira, Lima esclarece que os produtos agroecológicos são aqueles sem nenhum adubo externo, enquanto os orgânicos dispensam adubo químico ou veneno, mas podem levar esterco, compostagem ou adubo orgânico. É o caso das hortaliças, que costumam ser orgânicas porque precisam de adubos externos e defensivos naturais. Também há preocupação com a proteção das nascentes de água no entorno.
No início da feira, havia apenas 45 itens à venda. Hoje, são quase 200, distribuídos em 20 barracas. A necessidade de rodízio de culturas para descansar a terra faz com que a diversidade aumente. Lima afirma que há famílias que antes produziam uma só variedade e hoje plantam até 50. “Com toda a família empenhada, o custo da mão de obra é menor e a renda cresce. É melhor para o solo e para a alimentação das próprias famílias”, diz.
A PÉ OU NA WEB
Também aos sábados, acontece há sete anos a Feira Agroecológica da Praça de Casa Forte. Ela abriga 44 famílias de Goiana, Rio Formoso, Vitória de Santo Antão, Pombos e Chã Grande. Segundo o coordenador José Fernandes, a média de lucro por barraca é de R$ 300 a cada semana. Quanto mais diversificada, maior o lucro. Ele afirma que o principal público são as pessoas da terceira idade em busca de qualidade de vida e segurança alimentar.
De bicicleta, capacete e sacolas de nylon penduradas no guidom, o servidor público Sérgio Murilo percorre, toda semana, o circuito das feiras: Graças, Casa Forte e Sítio da Trindade. Faz isso há quatro anos, pensando na saúde, no sabor e na distribuição de renda proporcionada pela produção em pequenas propriedades. É um dos poucos consumidores a circular com ecobag – a quantidade de sacolas plásticas ainda é grande por lá.
Já a gerente de assistência técnica Anilis Cavalcante foi ao local, pela primeira vez, levada pelo filho Rodrigo, de 10 anos, que fazia um trabalho escolar sobre alimentos livres de venenos. Antes disso, só comprava frutas orgânicas eventualmente, na BR-232, a caminho de Gravatá. Agora, pensa em aderir ao movimento. “Quando cuidamos do meio ambiente, cuidamos de nós mesmos”, diz. O marido, Ricardo Xavier, destaca o preço mais barato devido à compra direta.
A arquiteta argentina Silvana Maríncola e o agrônomo pernambucano Flávio Duarte mantêm uma plantação de produtos orgânicos e um forno à lenha para pães integrais
Ninguém duvida de que os orgânicos fazem bem à saúde e ao planeta, mas nem todo mundo está disposto a madrugar para pegar os melhores horários das feiras de bairro. Para esses preguiçosos ecológicos, existe o site Comadre Fulozinha, criado pelas sócias Silvia Sabadell e Luciana Alves, há quatro anos. O cliente faz seu pedido e recebe em domicílio. A lista vai desde produtos de cuidados pessoais a frutas secas, grãos, laticínios e carnes.
O público é formado principalmente por mulheres de cerca de 45 anos com filhos, que trabalham e têm escolaridade de grau superior. “Elas preferem a praticidade de receber o produto orgânico em casa”, diz a coordenadora Sabadell, que já vendia produtos de sua horta orgânica junto com o marido desde 1996. A área de entrega abarca o Recife, Região Metropolitana, Gravatá e Vitória de Santo Antão.
No caso das carnes orgânicas, o diferencial está no respeito ao bem-estar do animal e na proibição de drogas para forçar o crescimento. “No mínimo, 80% da dieta alimentar devem ser de origem orgânica, sem fertilizantes químicos ou agrotóxicos nas pastagens, e o abate segue normas de abate humanitário”, explica o agrônomo Carlos André Cavalcanti. Todos os produtos processados vendidos no site são certificados.
SERTÃO ORGÂNICO
A historiadora, geógrafa e jornalista carioca Cláudia Bjorgum mora na Noruega, onde desenvolve pesquisa sobre os benefícios da agricultura orgânica no semiárido nordestino. Ela informa que a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou um estudo indicativo de que a conversão da agricultura convencional em orgânica pode aumentar a produtividade em regiões com solos menos férteis ou já desgastados.
“A agricultura convencional, aquela dependente do uso de agrotóxicos, insiste em manter uma imagem de ‘salvadora’ da agricultura, querendo nos fazer pensar que, sem ela, a fome do planeta vai aumentar. Mas a realidade é diferente: a fome mundial aumentou consideravelmente durante as últimas décadas, apesar das inovações da indústria de sementes, agrotóxicos e pesticidas”, afirma.
A hipótese da sua pesquisa é que o Nordeste brasileiro pode ser a região do Brasil mais beneficiada pelo cultivo de orgânicos. “A agricultura orgânica é mais efetiva em solos áridos e semiáridos. Pode contribuir para um aumento significativo da produtividade, já que solos manejados organicamente são capazes de reter mais água da chuva por causa da grande capacidade de absorção das matérias orgânicas”, explica.
Segundo a pesquisadora, ainda predomina uma visão errônea da agricultura orgânica como um sistema atrasado. “É preciso ter em mente que 70% da pobreza no mundo se concentram nas áreas rurais e uma mudança dessa natureza no campo pode alterar significativamente a qualidade de vida dos agricultores pobres”, diz. Para ela, a agricultura orgânica não é uma febre, mas um sistema agrícola viável e rentável que não vai parar de se expandir.
Para além da saúde, da natureza e do impacto social, as vantagens também aparecem quando se fala em paladar. “Eles são mais tenros e, por serem menores, concentram mais sabor. Eu aprecio bastante essas características nos alimentos”, opina a chef Fabíola Medeiros, do café-bistrô Novo Grão, nas Graças. Nos últimos anos, ela vem percebendo um aumento no número de clientes que procuram orgânicos. Para ela, o interesse pelos produtos sem agrotóxicos faz parte de uma busca mais geral por qualidade de vida. “Aí se encaixa a preocupação com o que se come, a procedência do alimento, a forma de preparo. Os restaurantes vegetarianos partiram na frente. A gastronomia, como todas as outras áreas, revela o comportamento das pessoas e também o acompanha ”, afirma.
“Às vezes, os produtos comuns são mais bonitos pela introdução de agrotóxicos, mas em compensação não são tão saudáveis quanto os orgânicos e acabam não tendo o mesmo sabor”, diz a chef Sofia Mota, do restaurante Jalan Jalan, em Boa Viagem. Apesar de achar que o fornecimento ainda deixa a desejar e a durabilidade é menor, pela ausência de químicos, ela lança este mês novo cardápio, incluindo uma seção vegetariana com insumos orgânicos.
OPÇÃO DE VIDA
A arquiteta argentina Silvana Maríncola, conhecida como Shivi, fez da plantação de alimentos orgânicos uma escolha para ajudá-la a realizar seu sonho: criar os três filhos – de 1, 6 e 8 anos, todos nascidos em casa – em contato com a natureza. No Brasil há quase 10 anos, ela casou com o agrônomo pernambucano Flávio Duarte e foram morar no sítio Nova Canaã, no Alto da Conquista, zona rural de Olinda.
Antes, ele vivia em Olinda e ia ao sítio de seis hectares apenas nos fins de semana. Ambos fugiram da vida urbana que levavam para entrar nesse novo ritmo. Nas terras reflorestadas, plantam frutas e hortaliças orgânicas, que vendem na Feira do Sindicato dos Bancários, na Boa Vista, na sexta à tarde, e na Feira de Olinda, na Praça do Carmo, no sábado pela manhã. Nesta última, já estão há oito anos, desde a sua inauguração.
Duarte, que também é professor e consultor de agroecologia, afirma que Pernambuco é um dos estados com mais feiras agroecológicas do país. A política de tabelamento contribui para firmar um preço justo tanto para quem vende quanto para quem compra. “Hoje contamos com 73 tipos de plantas diferentes no sítio, segundo o último levantamento que fizemos. Isso é sinal de aproveitamento da biodiversidade”, diz.
Além dos vegetais in natura, eles possuem uma pequena agroindústria de beneficiamento para abastecer a “barraca do lanche” da feira olindense – com mel, doces, geleias, pães, sucos e broas. Criam galinhas para ter ovos e cabras para fabricar queijos. Entre as frutas, plantam manga, jaca, carambola, laranja, jambo, banana. No público da feira, segundo Shivi, predominam jovens de classe média conscientes, ou idosos em busca de alimentação saudável.
Da padaria de forno à lenha saem pães com trigo integral moído na hora e recheados com ervas, frutas e sementes. “A alimentação integral busca ser a mais próxima possível da natural, sem refinamento”, explica. Para o biscoito de canela, a especiaria é extraída da árvore. O casal realiza intercâmbios e cursos sobre sustentabilidade, agroindústria e construções ecológicas. “É uma inspiração para as pessoas verem que um outro tipo de vida é possível.”
RENATA DO AMARAL, jornalista, mestre em Comunicação.
VLÁDIA LIMA, fotógrafa free-lancer, atua em projetos sociais de fotografia.