Deus e o diabo em terra de ninguém
'Lágrimas de um guarda-chuva', peça dirigida por Antônio Cadengue, expõe personagens circenses em confronto com seus destinos
TEXTO Alexandre Figueirôa
01 de Setembro de 2010
Foto Osmário Marques/Divulgação
Dois artistas mambembes – o mágico Sansão e a mulher-macaco Angelina/Zambê – chegam a uma cidade abandonada. O cenário é de desolação: o solo está coberto por folhas secas, as paredes estão desgastadas pelo tempo, as vidraças estão quebradas e as cortinas em farrapos. O vento sopra, inclemente, um eterno ar de tristeza e danação. Nesse lugar indefinido, um misto de antessala do inferno/ inverno e palco entre dois mundos, os personagens de Lágrimas de um guarda-chuva vão se confrontar com o seu destino. Em um dia, depois de percorrerem um longo caminho com seus apetrechos circenses, eles terão que decidir se continuarão a viver a poesia torta da existência, a despeito da vontade de Deus, ou se entregarão de uma vez por todas aos caprichos do Demônio, essa criatura que habita nossos sonhos, nossos mitos e nos afaga com a ilusão para, no instante seguinte, nos escancarar sua face pérfida de devorador de almas.
O texto do mineiro Eid Ribeiro, encenado e adaptado por Antonio Cadengue, nos revela em sua essência estética o encontro entre a força divina e a diabólica. O espetáculo, em cartaz no Teatro Barreto Júnior, no Recife, é marcado pela intertextualidade. Ribeiro, além de autor de peças como Corra enquanto é tempo e Cigarros Souza Câncer, dirigiu e montou textos teatrais de Samuel Beckett, Nelson Rodrigues e adaptou para o teatro A obscena Senhora D., de Hilda Hilst. Na sua construção, Lágrimas de um guarda-chuva reflete traços dessa trajetória. É uma fábula marcada pelo cinismo, mas que, ao mesmo tempo, revela um desejo de redenção e de crença diante do imponderável. O guarda-chuva e as lágrimas, nesse sentido, são as metáforas desse drama em que os protagonistas – entre o amor e o desprezo que sentem por si próprios –, a cada gesto e a cada palavra, buscam apegar-se ao sonho e à fantasia que forjaram para suas vidas, embora, diante deles, só restem como espectadores três homens cegos e um rei que se autocoroou.
Cadengue, um leitor sagaz do que está relacionado ao que pode ser expresso num palco, demonstra sua habilidade em traduzir em imagens o universo pensado e criado por um autor. Percebendo o quanto as influências dos já citados Beckett e Rodrigues, e dos cineastas Federico Fellini (num de seus filmes mais belos, A estrada da vida, também sobre atores mambembes) e Ingmar Bergman (em Noites de circo) emanam do texto de Ribeiro, recorreu às próprias referências para dar corpo e alma ao material que tinha em mãos.
CONCISÃO
A partir da alegoria da estação de outono – que nos é apresentada como emblema de uma sociedade cuja única saída parece ser a derrisão diante da necessidade de continuar existindo –, ele opta por uma cena que converge para a multiplicidade de sentidos, de modo que o espectador experimente, no espaço de tempo da duração do espetáculo, as sucessivas variações de estados da alma dos personagens propostas pelo autor. Isso nos é oferecido a partir de uma teatralidade concisa, palpável, em que os elementos cênicos – em sua simplicidade e significação – permitem conduzir nossa visão ao mistério mais fascinante do teatro: a possibilidade do jogo, espaço onde o real e o sonho se mesclam para nos falar de dentro de nosso próprio coração.
Para atingir tais objetivos e aprofundar as implicações das referências intertextuais pedidas pela montagem, Cadengue contou com a precisa concepção de cenário e figurino elaborada por Marcondes Lima. Ambos, cenário e figurino, funcionam como personagens, traduzindo, a cada movimento dos atores em cena, funcionalidade e beleza. Há tanta força de poesia na cenografia quanto nas palavras.
Desde a primeira cena, quando apenas o vento sopra sob a luz amarela, há uma antecipação do enredo e do sentimento que transpassarão a construção dos personagens. A música é também outro elemento de vital importância na fruição do espetáculo, pois alinhava o lirismo da encenação em seus instantes suaves e pontua com precisão os momentos sombrios.
É preciso, ainda, apontar o desempenho do elenco. Silvio Pinto compõe um Mestre Sansão – o mágico – com a intensidade dramática exigida pelo personagem, graças à segurança e maturidade de sua interpretação. Ele empreende uma caracterização que revela o conflito interno em que o mágico faminto e desesperançado está mergulhado e dá força ao tom fáustico de sua figura. Cira Ramos, como Angelina, a mulher-macaco, obrigada a entregar seu corpo aos homens, quando a farsa de sua encenação fatalmente é sempre revelada, está correta, embora a representatividade do elemento feminino, no contexto da peça, talvez exigisse dela um maior empenho no sentido de explorar com mais vigor e mais precisão os diferentes estados de espírito de Angelina. O mesmo é válido para Arilson Lopes, muito bem ao lado de Bobby Mergulhão e Marcelino Dias, no trio de cegos, porém, aparentemente, ainda um pouco tímido na sua performance como Carmelo, o rapaz que roubará o coração da personagem.
Lágrimas de um guarda-chuva, portanto, no atual cenário teatral pernambucano é um desses espetáculos que nos levam a acreditar novamente na capacidade dos artistas locais de empreenderem uma renovação saudável de nossa tradição nas artes cênicas. A dedicação e o esforço na sua construção são recompensados por um trabalho de beleza inquestionável, capaz de expressar a vitalidade de quem continua apostando na poesia.
ALEXANDRE FIGUEIRÔA, jornalista, professor e doutor em Cinema pela Universidade Paris III.