As doenças e a morte na arte
Pinturas e gravuras do acervo das obras-primas europeias expressam como as sociedades, pelos séculos, encaram epidemias e enfermidades, revelando aspectos de rejeição, medo e preconceito
TEXTO Marcelo Robalinho
01 de Julho de 2010
Em 'O triunfo da morte', o artista retrata a luta da humanidade para livrar-se de seu destino atroz
Imagem Francis G. Mayer/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock
Em O triunfo da morte, uma das obras mais conhecidas do pintor flamenco Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), a morte é vista numa paisagem panorâmica das pragas e guerras que assolaram o mundo europeu no século 16. Enfatizando as cores quentes, a pintura retrata a luta vã do homem em tentar se livrar do destino imposto pela morte, representada por um batalhão de esqueletos que exterminam tudo, restando apenas um cenário de devastação. Flagelos como a peste negra foram fonte de inspiração para artistas desde os tempos mais antigos, originando obras que marcaram as artes plásticas e contribuíram para a construção do imaginário que temos hoje a respeito das doenças.
O período mais marcante de representações artísticas sobre pragas e enfermidades ocorreu em meados do século 14, quando foi registrada a grande epidemia da peste – estima-se que 25 milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da moléstia só entre 1348 e 1350. Imagens infernais de doenças visitando as pessoas são encontradas em pinturas e gravuras da época e de séculos posteriores. Um sentido ilustrativo que deriva de um conceito bem mais antigo, o de epidemia.
No passado, a descrição artística das doenças não costumava conter a representação dos sintomas de uma enfermidade. Eram temas mais ligados ao macabro, como no óleo sobre tela de Brueghel, descrito anteriormente, que dá um tratamento fantástico à morte e ressalta o medo diante da calamidade. No livro História do medo no ocidente, Jean Delumeau pontua dois aspectos que costumavam ser acentuados pelos artistas que vivenciaram as epidemias da peste, além da punição divina: “A instantaneidade do ataque do mal e o fato de que, rico ou pobre, jovem ou velho, ninguém podia vangloriar-se de a ele escapar”. Segundo o historiador francês, “as crônicas de outrora que descrevem pestes constituem como que um museu do horrível”.
O leproso com deformidades nos membros, do artista Bernard van Orley, carrega um sino para alertar a sua presença. Imagem: Reprodução
Nas doenças retratadas de forma mais generalizada, a morte era a imagem mais comum, simbolizada por um esqueleto com uma foice. No caso da peste, havia outros motivos alegóricos. Um deles era a flecha transpassada pelo corpo, tendo como personagem-símbolo São Sebastião. A partir do século 14, observa-se o desenvolvimento da figura de São Roque como a iconografia da peste em toda a Europa. A imagem de Roque assume poderes guerreiros e de salvaguarda contra a doença, o que, de certa maneira, acabou influenciando a riqueza da arte e da arquitetura em alguns locais, como no caso da cidade de Veneza. Lá, igrejas foram construídas no início do século 16 depois de votos feitos pela população a Deus e à Virgem Maria, caso a epidemia de peste cessasse. A Basílica de Santa Maria da Saúde, situada perto da Ponta da Alfândega, é um desses monumentos venezianos erguidos como forma de agradecimento do povo pelo fim da epidemia.
“Para a história da arte, a associação da imagem de São Roque à peste permitiu representar a doença sem tabus, e não mais apenas de maneira simbólica, como a figura de São Sebastião, com as flechas transpassadas pelo corpo. A doença passa a ser representada de forma patológica, uma vez que a imagem de São Roque apresenta uma ferida na perna, o bubão da peste. É a primeira vez que se nomeia a peste e se ousa, de fato, olhá-la”, afirma Florence Chantoury-Lacombe, professora da Universidade de Montreal, no Canadá, e doutora em história da arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.
Ela lançou em junho, na França, o livro Preindre les maux (Pintar os males, em português). Prevista para sair no Canadá, em setembro, a obra analisa imagens realizadas por grandes artistas do Renascimento, tais como Paolo Veronese, Tintoreto, Cosimo Rosselli, Hans Holbein e Domenico Ghirlandaio, sob a ótica da história da arte, um viés de análise pouco explorado na atualidade. “As imagens da doença já foram objeto de vários estudos dos historiadores da medicina, mas muito pouco dos historiadores da arte, o que foi uma surpresa para mim”, explica Florence, em entrevista à Continente.
A obra de Domenico Ghirlandaio representa uma criança e um ancião
portador de rinofima, distúrbio que desfigura o nariz. Imagem: Reprodução
Segundo ela, a razão principal da sua pesquisa é mostrar que as imagens das patologias daquela época põem em questão os preceitos da pintura nos tratados artísticos da Renascença. “Resgatando a noção do belo e bom do filósofo grego Platão (o belo como manifestação do bem), vi que o retrato na pintura associava a beleza à virtude. Dentro dessa concepção, não era pertinente pintar um rosto doente ou deformado porque isso depreciava o modelo vigente. Estudando os teóricos da arte na Renascença, pude constatar como o pintor dissimulava os defeitos de um rosto. As imagens de uma doença tinham, então, um poder muito interessante porque elas recolocavam em questão esses postulados da época”, argumenta.
SÍFILIS E LEPRA
Dentre as imagens de moléstias reunidas, as obras retratando a sífilis foram algumas das que mais chamaram a atenção da pesquisadora, a ponto de classificar a doença como “o grande tabu da pintura”, por ter sido objeto de poucas representações e raramente apresentar a realidade dos sintomas com um critério de semelhança, ao contrário dos textos literários, que os descreviam detalhadamente. “Nas obras que tratam da sífilis, há algumas particularidades: em geral, são representações moralizantes nas quais o doente é associado a uma vida ‘desfeita’, ou então bem satíricas, zombando do sifilítico pelo fato de ele ter contraído a moléstia. Em outros casos, a doença é vista de forma escatológica, como um castigo enviado por Deus sobre um povo, concepção que também podemos encontrar nas obras que retratam a peste”, aponta Florence.
Outro retrato de doente também digno de análise é O ancião e a criança, do pintor italiano Domenico Ghirlandaio (1449-1494). O óleo sobre madeira traz, frente a frente, uma criança e um idoso portador de rinofima, um distúrbio raro que acomete geralmente os homens mais velhos, desfigurando o nariz. Para alguns estudiosos, o diferencial na obra do italiano é ter dado atenção a uma patologia e a uma deformação do rosto sem cair na caricatura ou no ridículo.
As representações da sífilis, vista como um castigo enviado por Deus,
geralmente eram moralizantes, associando os enfermos a uma vida
condenada. Imagem: Reprodução
Por muito tempo, a origem das epidemias foi uma incógnita, dando margem a diversas interpretações. Na Idade Média, a Igreja teve uma forte influência sobre a mente da população europeia, orientando-a quanto às explicações e aos métodos para evitar os males das pestes provocadas pelos pecados da humanidade. O Levítico, terceiro livro do Antigo Testamento, menciona a doença como um sinal de impureza e castigo de Deus. De caráter legislativo, a obra dá indicações minuciosas sobre o diagnóstico da lepra e expõe as normas que diferenciam o puro do impuro. Além disso, ressalta a necessidade de banimento do doente para a sua purificação.
Em A doença como metáfora, a ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004) diz que a noção de doença como punição é antiga e tem na lepra uma das histórias mais cruéis, suscitando significados moralistas. “Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada de significação. Primeiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção, decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. Ela própria torna-se uma metáfora. Então, em seu nome (isto é, usando-a como metáfora), aquele horror é imposto a outras coisas”, afirma Sontag.
O estigma da lepra está expresso na pintura do artista flamenco Bernard van Orley (1491-1552), que retrata um homem com deformidades nos membros usando um sino para alertar quanto à sua presença. Outra representação artística de leprosos pode ser vista n’Os aleijados, de Brueghel, na qual o artista flamenco revela a degradação física deles, além do agudo senso do pitoresco e da observação humorística. Na tela, é possível ver cinco doentes, dos quais três estão diante do espectador da cena. As fisionomias sugerem retardo mental. Com a pintura, que integra o acervo do Museu do Louvre, em Paris, o artista parece querer criticar a sociedade da época, que via, com indiferença e, muitas vezes, repulsa, as pessoas doentes.
“As epidemias sempre tiveram uma forte carga simbólica. Diversos eventos epidêmicos causaram mortalidade grande, como a peste negra, a gripe espanhola e, mais recentemente, a Aids, causando pânico na população”, comenta o médico infectologista Stefan Cunha Ujvari, autor dos livros A história e suas epidemias e A história da humanidade contada pelos vírus. “É normal que essa história de dor causada pelas doenças e epidemias tenha suscitado o interesse dos pintores. É uma parte importante da história da humanidade, que paga ainda hoje pelas implicações do progresso, destruindo nichos ecológicos e favorecendo a disseminação de agentes infecciosos”, considera Ujvari.
HUMOR COM A “CARA” DA MORTE
No início do século 20, a varíola, a peste bubônica
e a febre amarela eram representadas satiricamente
na imprensa brasileira. Imagem: Reprodução
No início do século 20, três doenças eram tratadas como flagelos no Brasil: a peste bubônica, a varíola e a febre amarela. Combatidas pelo governo da época, elas foram objeto de charges em jornais de todo o país, satirizando as medidas sanitárias defendidas por Oswaldo Cruz, então diretor de Saúde Pública do Brasil (o equivalente ao atual ministro da Saúde).
É curioso notar que essas doenças foram retratadas por meio de caveiras com foice representando a morte – um tipo de ilustração bem parecido com as pinturas do Renascimento que abordavam a “visita” da peste. “Aliado às ações empreendidas nos primeiros cinco anos do século 20 pelo então presidente da República, Rodrigues Alves, e o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, o trabalho da saúde pública não foi visto com bons olhos pela população. Assim, a demolição dos cortiços, o aterramento dos alagados, a instituição de uma polícia sanitária e a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola provocaram a reação do povo e da elite, levando a imprensa brasileira a produzir charges criticando as medidas”, recorda Carlos Fidelis Ponte, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, unidade carioca da Fiocruz.
A manifestação mais famosa ocorreu, em 1904, no Rio de Janeiro, com a Revolta da Vacina, uma reação à vacinação maciça. “A charge tem um poder de comunicação mais direto, pois o desenho fala por si só, não sendo necessário o texto escrito. Também não podemos esquecer que a maioria das pessoas era analfabeta naquela época”, afirma o historiador. Segundo ele, embora Oswaldo Cruz respondesse às críticas por meio de artigos e discursos, isso praticamente não chegava ao conhecimento do povo, ficando apenas as charges como fonte de informação. A situação se converteria em elogios ao sanitarista a partir de 1908, com o controle das epidemias.
“Apesar de bem-humoradas, as charges não contribuíram para uma correta compreensão das doenças. O potencial de comunicação delas não foi aproveitado e acabou funcionando de modo negativo em relação à difusão do conhecimento”, reconhece Ponte, que está organizando, com a pesquisadora Ialê Falleiros, o livro Na corda bamba de sombrinha, que pretende fazer um resgate da saúde pública do período colonial aos dias atuais.
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