Literatura infantil
Escritores, ilustradores, educadores, editores e o Estado atuam em diferentes campos, às vezes coordenados, na criação de ações e programas que fomentem o setor
TEXTO DANIELLE ROMANI
ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS
01 de Março de 2010
Ilustração Karina Freitas
Na década de 1970, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declarou ser o hábito da leitura fundamental na formação de adolescentes e crianças. Foi o suficiente para que educadores do mundo inteiro, inclusive os brasileiros, deflagrassem um movimento em prol da adoção de obras literárias como material paradidático.
O que deveria ser uma orientação, para melhor, no currículo e na vida de milhões de estudantes, tornou-se um impasse, observa Haidée Camelo, coordenadora do Curso de Letras da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É que, apesar da adesão à declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) ter as melhores intenções, havia um descompasso entre o tamanho da tarefa e o cenário que se vislumbrava no Brasil do período. Em plena ditadura militar, sem tradição na edição de livros dirigidos a crianças e adolescentes, os brasileiros careciam de autores, material didático ou experiência prática para iniciar o trabalho.
“A declaração da ONU foi feita à época da reforma do ensino brasileiro, deflagrada no começo da década de 1970, que ampliou de cinco para oito anos a escolaridade obrigatória. Os educadores acharam por bem, já que a carga horária havia sido ampliada, que a recomendação da Unesco fosse adotada, e que os alunos tivessem acesso e estímulo à leitura. O único problema é que inexistiam diretrizes para tanto. E o mais grave: os próprios professores não eram bons leitores”, diz Haidée.
Devido à censura, o mercado de livros era precário: as obras de centenas de escritores – brasileiros e estrangeiros – eram consideradas impróprias pelo regime militar, que proibia suas publicações no Brasil. A declaração da Unesco, portanto, teve um efeito maléfico para aquela geração de crianças que, repentinamente, se viu restrita a ler apenas o que era permitido e filtrado pelos censores.
Esse cenário, destaca Haidée, provocou um movimento inverso ao desejado, cujos efeitos são sentidos até os dias atuais: milhões de pessoas passaram a encarar a leitura como um hábito maçante, chato e cansativo. Na verdade, tornaram-se avessas aos livros.
Nas duas décadas seguintes, nos anos 1980 e 1990, com a reabertura política e um relativo amadurecimento, o mercado foi em busca de autores adequados e de ilustradores capazes de produzir edições atraentes para crianças e adolescentes. Mas ainda assim foram cometidas insanidades em nome da “formação literária da Nação”.
“As editoras começaram a publicar, indiscriminidamente, tudo o que lhes caía em mãos. Portanto, era comum analisarmos um material com finalidade paradidática e nos depararmos com erros gritantes de português, argumentos inadequados, textos mal-escritos ou simplesmente com um enredo sem sentido. Não havia cuidado nem preocupação em adequar o material a ser entregue ao público infanto-juvenil”, ressalta Haidée, que à época trabalhava com o ensino fundamental.
A escritora Lenice Gomes defende que os livros têm que “sacudir” os leitores.
Foto: Otávio de Souza
Neste novo milênio, avanços foram percebidos. Escolas e editoras estão mais preparadas para educar e “iniciar” estudantes no universo literário. Mas existem falhas. “Hoje, dificilmente encontraria um professor que indicasse Alexandre Herculano para uma 6ª série em uma escola pública noturna, como já encontrei no passado. Mas ainda existem professores que não são leitores, outros que associam leitura a castigo e alguns que fazem do texto apenas um suporte para ensinar estilos”, lamenta a coordenadora do curso de Letras da Unicap.
ESTÍMULO AO PROFESSOR
Três décadas depois da declaração da ONU, o governo federal e as escolas começam a adotar medidas para que a literatura chegue às salas de aula de forma menos burocrática. “Tanto o governo federal quanto o estadual têm insistido na capacitação dos professores de vários municípios e estados. Eles frequentam cursos dirigidos, recebem computador pessoal para trabalhar, bônus para comprar livros e ainda uma ajuda de custo para estudar”, exemplifica Haidée, que já teve a oportunidade de dar cursos de especialização a professores da rede estadual. O investimento da Secretaria de Educação de Pernambuco na formação de professores também se dá no estímulo à participação em eventos como as bienais do livro.
Sobre o uso de livros ficcionais como suporte para a sala de aula, a Secretaria de Educação estadual defende uma posição. “Não existe determinação legal para aquisição de títulos literários, nem no nível federal, nem estadual. Mas acreditamos que é prioridade o aluno ter acesso à leitura, e desde 2003 investimos para que todas as turmas de colégios sob a responsabilidade do Governo do Estado tenham uma minibiblioteca em sala de aula”, explica a secretária-executiva de Desenvolvimento da Educação, Aída Monteiro.
A montagem dessas minibibliotecas atinge todas as séries, inclusive as turmas entre 1ª e 4ª séries, legalmente sob a tutela das prefeituras municipais. “Cada sala de aula recebe uma caixa de literatura com 40 diferentes títulos de autores brasileiros. Os livros são escolhidos com base na qualidade do texto e na faixa etária, a partir de pesquisas de nossos educadores”, diz a gerente-geral do Programa de Correção do Fluxo Escolar, Ana Selva, enumerando alguns critérios para a adoção de livros.
“São levados em conta diversos fatores , entre os quais, o uso da linguagem, que deve ser adequada ao nível do aluno; a atualização às novas normas gramaticais; a inexistência de preconceito de qualquer tipo, não apenas no que está escrito, mas também no que se vê nas imagens; e, um dos pontos mais importantes, o respeito à cultura local”, afirma Selva.
RECORTE REGIONAL
Além dos autores nacionais como Ziraldo, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, entre tantos outros, os técnicos da Secretaria de Educação adicionam à minibiblioteca de classe o que chamam de “recorte regional”, ou seja, inserem na “caixa” livros de autores pernambucanos. Especialmente, títulos publicados pelas duas editoras locais que disputam o segmento: a Edições Bagaço e a Edições Edificantes. Criadas há mais de 25 anos – a Edificantes em 1982 e a Bagaço em 1984 –, as duas têm suas sobrevivências totalmente atreladas ao mercado do paradidático. Sem ele, dificilmente se manteriam em atividade por tanto tempo.
“Funcionamos a pleno vapor entre dezembro e março. O restante do ano é secundário, porque na grande parte do tempo trabalhamos na terceirização de livros”, diz o fundador da Edificantes, o historiador e filósofo Edvaldo Arlego, que afirma ter no catálogo cerca de 150 títulos paradidáticos, entre os quais 100, exclusivamente, de literatura infantil.
A educadora Haidée Camelo avalia que a situação do mercado é melhor hoje que
há 30 anos. Foto: Otávio de Souza
“Em 2009, tivemos 50 livros infantis adotados”, observa Arlego, que, no entanto, ressalta já ter, num passado recente, vendido e atingido mais escolas, principalmente as localizadas nas periferias da cidade. “Nossos livros têm um preço muito em conta, os mais caros não chegam a custar R$ 20. Entretanto, algumas editoras de fora estão oferecendo livros a R$ 1,50. Material sem qualidade, versões baratas dos contos de fadas. Isso faz toda a diferença na hora em que um pai pega a listagem de compras que especifica, apenas, que ele deve comprar um livro de ‘literatura infantil’”, pondera Arlego, que tem entre os autores infanto-juvenis do seu catálogo nomes como Amílcar Dória Matos, Ana Trajano e Luiz Gonzaga Lopes, só para citar alguns.
O catálogo da Bagaço tem o dobro de títulos da concorrente: 200 na área de infanto-juvenil, com autores variados, a exemplo de Ronaldo Correia de Brito, Paulo Caldas, José Teles e Tereza Haliday, entre muitos. A editora também se notabiliza por um tratamento gráfico bem mais acurado. “Em 2010, vamos ter livros nossos adotados por mais de 20 escolas locais, além de termos títulos encomendados por instituições de Goiás, do Acre e Rio de Janeiro”, explica Inêz Koury, uma das sócias da editora.
Assim como Arlego, Inêz admite que a editora é dependente da adoção dos seus livros como material paradidático para sobreviver. “Todas as editoras que trabalham com literatura infanto-juvenil têm as escolas como o grande filão. Se dependêssemos dos pais, estaríamos numa situação complicada”, diz ela.
CRIANÇAS LEITORAS
A escola tem papel fundamental na formação de leitores. Trabalho que começa quando os educadores se reúnem para selecionar livros e autores. “Avaliamos os catálogos, verificamos os temas, os autores, buscamos novidades, verificamos se as ilustrações são coerentes, se o texto não tem erros, nem impropriedades. Enfim, é um trabalho detalhista, amoroso e cuidadoso, que busca aproximar e não afastar a criança da leitura”, explica Ana Paula Figueiredo, coordenadora do Lubienska Recanto, que recebe crianças em fase de pré-alfabetização.
O cuidado é extensivo a todas as séries do colégio, que lida com várias faixas etárias. “Temos que respeitar a idade e o potencial cognitivo das crianças. O educador deve ter sempre em mente que o livro deve funcionar como um ‘Abre-te, Sésamo!’, ou seja, deve envolver, encantar, jamais afastar”, observa a professora da instituição Christiana Costa, pós-graduada em literatura infantil.
Não fosse o trabalho da escola, muitas crianças perderiam a chance de ser bons leitores. “Se hoje meus filhos gostam de ler, isso se deve ao estímulo do colégio onde estudam. Não sou uma boa leitora”, afirma a vendedora Adelaide Paraíso. Mãe de Lucas, 12, Letícia, 10 e Lorena, 8, Adelaide se admira da avidez do filho mais velho pelos livros. “Ele tira as melhores notas de redação da classe, escreve de uma forma muito madura para sua idade, até melhor do que falando”, orgulha-se.
Lucas dedicou parte das últimas férias à leitura do livro Quem conta um conto e outros contos, recomendado pelo Colégio Terceiro Milênio-Objetivo, onde estuda com as duas irmãs. “O conto de que mais gostei foi O plebiscito, de Artur Azevedo”, afirma, para logo em seguida explicar com detalhes a história. As irmãs pequenas pegam carona na paixão de Lucas e também desfiam suas preferências literárias. Letícia afirma adorar romances e aventuras. A pequena Lorena também se exibe com um exemplar de A pequena sereia. “ Reconheço que a escola fez esse favor à nossa família”, diz Adelaide.
Os irmãos Letícia, Lorena e Lucas: livros já são uma paixão. Foto: Otávio de Souza
Articulada e leitora de títulos que extrapolam a sua faixa etária – a exemplo da Comédia de erros, de William Shakespeare – Viviane Ellen Pedrosa Barros, 13 anos, aluna do Colégio Salesiano, diz que teve total apoio dos pais para se tornar uma boa leitora. O que se reflete nas suas ideias e opiniões. “Lendo, você desenvolve a capacidade de compreensão, aprende assuntos que jamais imaginaria, diverte-se e ainda por cima tem companhia garantida para as horas vagas”, diz a garota, que também aprecia a série Crepúsculo e os muitos livros do bruxinho Harry Potter.
Maria Clara Targino Monteiro Ferreira, 12, estudante do Colégio Grande Passo, é outro caso de precocidade literária. Lê uma média de cinco títulos por mês, além de já ter se debruçado sobre clássicos adultos como A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, entre outros. Recentemente, descobriu a série juvenil Os Karas, pelo título A droga da obediência, de Pedro Bandeira, pela qual se apaixonou. “Gostei tanto, que pedi à minha mãe toda a coleção.” No que foi atendida pela mãe Josete Targino, professora de língua portuguesa e literatura brasileira.“Acredito que a leitura alimenta a alma, além de enriquecer o imaginário e ser também uma porta aberta para o exercício da cidadania. Ler é como respirar. É imprescindível à vida”, define a professora.
AINDA O AMADORISMO
Pernambuco é um mercado em expansão, em que há autores e ilustradores competentes, mas ainda incapaz de proporcionar a sonhada independência financeira àqueles que desejam viver apenas da produção de literatura infantil. Quem insiste em manter-se na ativa, ou o faz porque pode se dar ao luxo de bancar o próprio trabalho, ou porque tem parceria com editoras de outros estados.
Foi por falta de perspectivas que a ilustradora Rosinha desistiu do mercado recifense. Com 16 anos de estrada, a artista considera as ofertas das editoras locais extremamente limitadas. “Não dá para viver trabalhando aqui. É impossível”, resume a artista, que presta serviço para editoras de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e que está produzindo o primeiro livro com ilustrações e texto próprios. Entre seus trabalhos, vale a pena conferir Arlequim (Bagaço), em parceria com Ronaldo Correia de Brito.
Radicado em Porto Alegre, o pernambucano André Neves é outro veterano que decidiu deixar o Recife para buscar mercados mais profissionais. E encontrou entre os gaúchos um ambiente propício. “O Rio Grande do Sul não é o mercado mais rico, mas existe uma grande preocupação no tocante à cultura e educação, além de uma forte política de leitura”, diz. Atuando tanto como ilustrador quanto como escritor, ele afirma não se lembrar de quantos títulos ilustrados assinou, mas pontua os 13 trabalhos nos quais assina texto e ilustração. “Aqui encontrei um mundo literário que anda de uma forma diferente do país. Grandes autores para bons leitores. Em Pernambuco, pelo menos quando eu ainda morava lá, pouquíssimas pessoas desenvolviam um trabalho com seriedade”, afirma André, que está no mercado desde 1998.
O professor e escritor Antônio Nunes, ganhador das duas últimas edições do Prêmio Elita Ferreira, promovido pela Academia Pernambucana de Letras (APL), com os contos A visão do mundo de um cãozinho de estimação (2009) e O aprendiz de Don Juan (2008), sabe bem o que é isso. Ele só conseguiu um espaço no mercado após vencer os dois concursos. “Se a pessoa não tem um agente literário eficiente, se não está ligada a uma grande editora e a distribuidoras, tem poucas chances de levar sua produção ao grande público”, diz o escritor, que sobrevive do salário de professor da UFPE.
Indicada pela crítica como um dos grandes talentos da literatura infantil – no ano passado a Folha de S.Paulo apontou seu livro Pererêêê pororóóó como uma das obras infanto-juvenis que não devem faltar nas bibliotecas –, a pernambucana Lenice Gomes é apaixonada pelo que faz. “A literatura tem que dar ‘solavancos’, como diz o escritor Manuel de Barros. É preciso sacudir os leitores, é preciso ser uma ‘descascadora de cebolas’, ou seja, ir retirando as camadas, buscando as essências de suas experiências como leitores”, diz a autora de Amores em carnavais, mistérios dos papangus (Paulinas) e Mas como se espevita essa bruxa Benedita! (DCL), entre outros.
Os desenhos do livro de Elita Ferreira foram feitos por Fernando Raposo.
Imagem: Fernando Raposo/Divulgação
Apesar do entusiamo, do reconhecimento e até do fato de ter contrato com editoras nacionais, Lenice também afirma que os ganhos com os direitos autorais e a venda de livros são insuficientes para sobreviver. “Independentemente do que ganho ou não, posso dizer que me sinto muliplicada e enriquecida”, declara a escritora que, apesar de ter 26 livros publicados, permanece numa roda-viva de palestras, oficinas e projetos para manter-se financeiramente.
Autor de dois livros infantis, o jornalista Cicero Belmar reconhece que, pelo menos no Recife, o gênero não “enche a barriga de ninguém”. Por esse motivo largou os livros e partiu para a montagem de peças teatrais infantis, estas, sim, passíveis de algum ganho. “Acho que muitos autores acabam indo para o teatro diante da perspectiva de um maior retorno financeiro e de um prazer semelhante, pois também estamos lidando com histórias, com o lúdico e levando alguma mensagem para as crianças”, diz.
Se perguntarem ao escritor Luciano Neves quando começou a escrever, ele responderá que a literatura entrou na sua vida sem avisar, o que redundou na produção de cinco livros, um deles Deslembrar (Larousse Jovem), com lançamento previsto para este mês. Apesar de entusiasmado pelo que faz, e de ter contratos com editoras nacionais, ele garante que os ganhos com a literatura ainda são insuficientes para pagar suas contas. “Reconhecimento temos, mas ainda não dá para fazer apenas isso. Um dia chego lá”, diz.
Novatos, Fernando Raposo e Emerson Pontes estão há poucos anos no mercado e não o consideram limitado. “Recife vem melhorando o tempo todo”, diz Emerson, que tem livros editados pela Construir (outra pernambucana que se prepara para disputar o mercado infantil) e pela Bagaço. O ilustrador Fernando Raposo, que estreou com o livro Feito um carrossel, de Elita Ferreira, editado no ano passado, produz atualmente desenhos para livros didáticos da editora Moderna. “Para mim, que comecei em 2009, o Recife ainda é um espaço a ser explorado”, avalia.
Imagem do livro Viva eu, viva tu. Viva o rabo do tatu, de Lenice Gomes, feita pelo veterano André Neves. Ilustração: André Neves/divulgação
A LEITURA IDEAL POR FAIXA ETÁRIA
Veja quais as recomendações de leitura para crianças, de acordo com a professora Christiana Costa, mestre em literatura infantil, a partir de orientações da escritora Vania Dohme, autora do livro Técnicas de contar histórias.
Até três anos
Recomenda-se utilizar livros com gravuras de bichinhos, brinquedos e animais com características humanas.
Entre três e seis anos
Opte por histórias com muita fantasia. Com fatos inesperados e repetitivos (exemplo: aqueles que têm como recurso os lenga-lengas) e cujos personagens são crianças ou animais.
Sete anos
São indicados os contos de fadas e histórias sobre o ambiente onde estão inseridas. Fábulas também podem ser contadas a partir desta idade.
Oito anos
A dica é optar por histórias que utilizam a fantasia de forma mais elaborada. Histórias vinculadas à realidade.
Nove anos
São indicadas as aventuras em ambientes longínquos ou histórias que se passem em outros planetas. As crianças também vão gostar de aventuras e narrativas de viagens.
10 a 12 anos
Utilize narrativas de viagens, explorações, invenções e mitos.
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