Cobertura

Corpos em dupla pulsão

No último final de semana, o Trema! Festival de Teatro trouxe à Camaragibe e Recife 'DNA de Dan', performance de Maikon K. censurada no ano passado

TEXTO Sofia Lucchesi

04 de Junho de 2018

Maikon K. em 'DNA de Dan', performance censurada em Brasília no ano passado, interrompida pela polícia militar durante apresentação em frente ao Museu Nacional da Repúblico

Maikon K. em 'DNA de Dan', performance censurada em Brasília no ano passado, interrompida pela polícia militar durante apresentação em frente ao Museu Nacional da Repúblico

FOTO Rogério Alves/Divulgação

A cada um que entra, um pouco de energia é doada. O óvulo, já fecundado, perde um pouco de ar, mas precisa de pouco tempo de recuperação. Assim, de uma em uma, 45 pessoas adentram a “bolha” para testemunhar o nascimento. Em DNA de Dan – performance apresentada no último final de semana em duas sessões durante o Trema! Festival de Teatro, uma em Camaragibe e outra no Recife – o nascimento que testemunhamos não é o do performer paranaense Maikon K. O corpo ali presente já não pertence mais a um nome ou a uma consciência e, aos poucos, no respirar e transpirar de um estado de existência primal, nós também passamos a ser esse corpo-embrião.

A “bolha”, se assim podemos descrever, é um espaço imersivo criado com a colaboração do artista Fernando Rosenbaum para integrar o público à performance de Maikon K. No feto, a impossibilidade de distanciamento potencializa a vivência: dividindo o mesmo ar, compartilhamos a experiência de uma forma mais íntima e coletiva do que se pudéssemos nos mover dentro do galpão. Não temos para onde fugir. Antes de entrar, somos avisados pela equipe do Trema! para que, por favor, não tiremos fotos. A restrição contribui para a vivência, e já de antemão nos avisa que o tempo ali é outro. O nascer é longo, enquanto a vida e a morte podem ou não ser.

Logo após a entrada dos 45 ocupantes, a chuva de Camaragibe parecia querer contribuir com o clima de tensão da espera. Tão forte se tornou o som que o espectador participante pode até mesmo ter ficado em dúvida se o barulho da chuva nas telhas do Guarany Esporte Clube já integrava a trilha sonora da apresentação ou era ocasião do happening, tendo cessado pouco antes do nascimento começar. Com os pequenos movimentos do corpo, a pele que lhe reveste (líquido comestível seco na pele do performer, pesquisa de outra parceria, desta vez com a artista Faetuza Tezelli) começa a rachar, até que, tal qual a saída desse estado embriogênico, o corpo lentamente vai ao chão, em uma gênese metamórfica. Nesse mesmo ritmo, começa a rastejar.

Segundo o artista, a metáfora da serpente (Dan) é parte das religiões de matriz africana, correspondendo também ao Orixá Oxumaré, e o nosso DNA, que também é formado por duas “serpentes” entrelaçadas. Nesse estado animalesco, no qual ele come a própria pele, o corpo nos provoca a interagir na mesma irracionalidade, e o público responde: em um momento da apresentação, um participante pega com os dentes o pedaço de pele na boca do animal, os dois se beijam e comem a carne.

Esse não é um corpo bonito, pelo menos não dentro dos padrões que esperamos, apesar de, já mais no final da apresentação, trazer movimentos graciosos. É um corpo que nos traz dupla pulsão, dois opostos: um incômodo que pode se manifestar fisicamente, mas também, um certo magnetismo, uma vontade de olhar. Se há quem partilhe da carne, existe quem sinta a ativação da performance de forma menos explícita. Por vezes, parecemos nos transpor para o corpo que observamos, sentindo enjoo, ânsia de vômito. E, dessa própria impossibilidade de passar incólume que é a arte, renascemos. 

Outros corpos incômodos também integram a programação do festival, a exemplo da atriz trans Renata Carvalho, em sua peça O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu. Ela e Maikon K. estão entre @s artistas censurad@s durante a onda repressora que parece ter se intensificado no segundo semestre do ano passado. A curadoria, para além de trazer artistas censurados, escolheu peças que criticam facetas diferentes do status quo dominante (como Luzir é Negro!, A invenção do Nordeste, Altíssimo e o próprio Evangelho). Com o tema “narrativas para uma humanidade em extinção”, o Trema! ratifica seu lugar enquanto resistência simbólica, posicionando-se de forma muito clara nesse front. Ademais, também afirma a arte contemporânea como território de possibilidades híbridas ou múltiplas, de difícil enquadramento a categorizações determinantes.

SOFIA LUCCHESI é graduanda em Jornalismo pela Unicap, estagiária de reportagem da Continente e fotógrafa. 

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