A obra surge no final de 2017 para início de 2018, quando dois estupros coletivos no país ganham grande repercurssão na mídia. Ou seja, a investigação nasce de um atravessamento não só da linguagem artística e estética, é um trabalho que ativa uma ancestralidade de violência em um corpo historicamente objetificado. Esse corpo estendido é de todas que foram violentadas, é o corpo de Ludmilla e também o corpo da mãe, da avó, da tataravó, o meu. É cíclico. É um trabalho que ativa uma cicatriz coletiva.
A relação de Fuck her com a temporalidade não se restringe apenas à historicidade da opressão, mas ao alargamento do espaço e do tempo que a performance propõe. É um convite a um lugar intimista, apresentado em uma sala escura, com um foco de luz apenas na ação, no que está acontecendo. Traz o público para um experiência corporal contemplativa, para uma pausa, um tempo não cotidiano que se dilata pelos 40 minutos de apresentação.
Não existe uma hierarquia estabelecida com a plateia, não existe nada imposto ao espectador. Tem cadeira, mas pode sentar no chão, pode ficar em pé, pode chegar atrasado, pode ir embora, isso também é dramaturgia. É, sim, um respiro, mas também é desconforto, sobretudo para quem olhar aquele corpo e entender o que ele carrega. Como o público lida com o corpo nu? Com os bichos que comem, mordem, beliscam, digerem e defecam?
Esteticamente, Fuck her é um trabalho que se inclina tanto para a linguagem da fotoperformance, como da instalação performática. Há seis anos, Ludmilla, ao lado do artista plástico Lucas Dupin e da fotógrafa Luiza Palhares, criam o primeiro fórum dedicado a discussões sobre o lugar da fotografia na performance, a partir da perspetiva de artistas e pesquisadores. O projeto, intitulado de Fórum de Fotoperformance, surge justamente dessa fricção e inquietação da arte junto ao registro fotográfico. “Bom, eu chamo um fotógrafo para fotografar o meu trabalho ou para compor junto comigo?”, questiona a artista em conversa com a Continente. A reflexão vai além: como pensar o trabalho através dessa moldura da imagem, da captura de um instante? Se torna obra ou registro?
Fuck her tem um caráter de instalação que dialoga com o tempo, um trabalho duracional que já foi executado por horas. Foto: Luiza Palhares/Divulgação
Provocada pelo encontro com a artista Carolina Bianchi e paralelamente pesquisando o que há de fotoperformance no Brasil, Ludmilla se debruça nas obras de Ayrson Heráclito, baiano e um dos nomes mais expressivos da fotoperformance atualmente, e Berna Reale, artista de Belém que traz referências feministas absurdas em seu trabalho. O resultado final do projeto, que tem o corpo como suporte e dispositivo tensionador do espaço das artes visuais e performance, é, com certeza, uma das obras mais diferentes da mineira, que condensa outros trabalhos nas linguagens cênicas, especialmente do teatro físico.
É difícil estabelecer um significado único para Fuck her. Pode ser uma microdança ou Butô, conhecida como a dança da morte – e, com certeza, o trabalho fala de morte, de feminicídio. No lugar da fotoperformance, talvez se entenda como uma instalação ou fotografia. Mas, de acordo com as referências, sobretudo de quem assiste e interpreta, se enxergam diversas camadas e leituras na obra. Ou, talvez, só o desconforto contemplativo de um corpo-objeto.
TANIT RODRIGUES é atriz, jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiária da Continente.