Cobertura

Uma cicatriz coletiva

Memória e autoficção são dispositivos para abordar a historicidade da opressão feminina em instalação performática de Ludmilla Ramalho

TEXTO Tanit Rodrigues

26 de Abril de 2022

Ludmilla Ramalho encontra no campo da 'performance' a horizontalidade das linguagens artísticas

Ludmilla Ramalho encontra no campo da 'performance' a horizontalidade das linguagens artísticas

Foto Bernardo Cabral/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Por vezes se percebe a potência de um artista na miudeza das ações, nas minúcias dos gestos. Caso de Fuck her, trabalho apresentado neste Trema! Festival, como a performance-instalação da mineira Ludmilla Ramalho. A atriz, performer e diretora, atravessada pela linguagem das artes visuais e fotoperformance, investiga e debate nesta obra as noções de feminino, machismo e misoginia inseridos historicamente na sociedade. 

A ação da performance é um corpo estendido no chão, nu, quase soterrado por 80 quilos de ração e coberto por 40 pintos. Os filhotes se alimentam ora da comida, ora do próprio corpo da artista. Ao redor do seu corpo, como espectador, é possível respirar junto à mulher deitada sobre o linóleo preto, perceber seu abdômen contrair e expandir a cada segundo, em movimentos mínimos. Talvez essa fosse a premissa. No entanto, na medida em que se observa mais atentamente, entende-se que há um jogo acontecendo.

De um lugar de investigação performática, desnudam-se as camadas do trabalho. Existe, antes de tudo, um jogo com a linguagem. O pinto, por si só, tem uma conotação dúbia, é uma metáfora que se relaciona com o animal em si e com o falo masculino. Além disso, o nome Fuck her – traduzido livremente para o português como “Foda ela” ou “Coma ela” – é bem direto. A partir dessa imagem, dessa metáfora, o trabalho traz uma relação com esse corpo que é violentado, assassinado a cada minuto e tido como corpo-objeto, abjeto ou, mais além, o oposto do que propõe Merleau Ponty com o corpo-sujeito.


Fuck her chegou a ser apresentado em vários estados do país e em Portugal. Foto: Bernardo Cabral/Divulgação

A obra surge no final de 2017 para início de 2018, quando dois estupros coletivos no país ganham grande repercurssão na mídia. Ou seja, a investigação nasce de um atravessamento não só da linguagem artística e estética, é um trabalho que ativa uma ancestralidade de violência em um corpo historicamente objetificado. Esse corpo estendido é de todas que foram violentadas, é o corpo de Ludmilla e também o corpo da mãe, da avó, da tataravó, o meu. É cíclico. É um trabalho que ativa uma cicatriz coletiva.

A relação de Fuck her com a temporalidade não se restringe apenas à historicidade da opressão, mas ao alargamento do espaço e do tempo que a performance propõe. É um convite a um lugar intimista, apresentado em uma sala escura, com um foco de luz apenas na ação, no que está acontecendo. Traz o público para um experiência corporal contemplativa, para uma pausa, um tempo não cotidiano que se dilata pelos 40 minutos de apresentação.

Não existe uma hierarquia estabelecida com a plateia, não existe nada imposto ao espectador. Tem cadeira, mas pode sentar no chão, pode ficar em pé, pode chegar atrasado, pode ir embora, isso também é dramaturgia. É, sim, um respiro, mas também é desconforto, sobretudo para quem olhar aquele corpo e entender o que ele carrega. Como o público lida com o corpo nu? Com os bichos que comem, mordem, beliscam, digerem e defecam?

Esteticamente, Fuck her é um trabalho que se inclina tanto para a linguagem da fotoperformance, como da instalação performática. Há seis anos, Ludmilla, ao lado do artista plástico Lucas Dupin e da fotógrafa Luiza Palhares, criam o primeiro fórum dedicado a discussões sobre o lugar da fotografia na performance, a partir da perspetiva de artistas e pesquisadores. O projeto, intitulado de Fórum de Fotoperformance, surge justamente dessa fricção e inquietação da arte junto ao registro fotográfico. “Bom, eu chamo um fotógrafo para fotografar o meu trabalho ou para compor junto comigo?”, questiona a artista em conversa com a Continente. A reflexão vai além: como pensar o trabalho através dessa moldura da imagem, da captura de um instante? Se torna obra ou registro?


Fuck her tem um caráter de instalação que dialoga com o tempo, um trabalho duracional que já foi executado por horas. Foto: Luiza Palhares/Divulgação

Provocada pelo encontro com a artista Carolina Bianchi e paralelamente pesquisando o que há de fotoperformance no Brasil, Ludmilla se debruça nas obras de Ayrson Heráclito, baiano e um dos nomes mais expressivos da fotoperformance atualmente, e Berna Reale, artista de Belém que traz referências feministas absurdas em seu trabalho. O resultado final do projeto, que tem o corpo como suporte e dispositivo tensionador do espaço das artes visuais e performance, é, com certeza, uma das obras mais diferentes da mineira, que condensa outros trabalhos nas linguagens cênicas, especialmente do teatro físico.

É difícil estabelecer um significado único para Fuck her. Pode ser uma microdança ou Butô, conhecida como a dança da morte – e, com certeza, o trabalho fala de morte, de feminicídio. No lugar da fotoperformance, talvez se entenda como uma instalação ou fotografia. Mas, de acordo com as referências, sobretudo de quem assiste e interpreta, se enxergam diversas camadas e leituras na obra. Ou, talvez, só o desconforto contemplativo de um corpo-objeto.

TANIT RODRIGUES é atriz, jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiária da Continente.

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