Cobertura

Todo fim é um ponto final?

Após três anos sem acontecer, ‘Trema! Festival’ reacendeu a chama da presença nos espaços cênicos do Recife, com edição marcada por encontros entre público e diferentes linguagens

TEXTO MÁRCIO BASTOS E TANIT RODRIGUES

03 de Maio de 2022

Momento da apresentação do Estesia (PE) convida Coelho Radioactivo (Portugal)

Momento da apresentação do Estesia (PE) convida Coelho Radioactivo (Portugal)

Foto Danilo Galvão/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

A edição de 10 anos do Trema! Festival, que acabou no domingo (1º), teve como missão promover o reencontro do projeto com o Recife, sua cidade, após um hiato de três anos. A produção evitou usar o termo “renascimento”, preferindo partir da ideia de fim – sem que essa ideia significasse um ponto final, pois, o fim pode possibilitar, também, um novo começo. 

Dividido em lado A e B, o evento congregou um público diverso e ávido por retornar presencialmente aos teatros, estabelecendo também a reconexão da plateia com os artistas após esse vácuo pandêmico. Foram duas semanas intensas, com atividades formativas e apresentações de espetáculos pernambucanos, nacionais e internacionais, de diferentes linguagens que colocam em evidência questões importantes da sociedade e da produção de arte contemporânea.  

Uma das características mais interessantes do Trema! Festival, presente desde sua primeira edição até a de 2022, é a ousadia curatorial. Nesta primeira década, o festival não deixou de se reinventar e acompanhar o seu tempo, abdicando de ter um recorte exclusivo de teatro de grupo para agregar outras expressões, como a dança e a performance. Entre os dias 19 de abril e 1º de maio, chamou a atenção o caráter experimental de algumas obras, que borraram os limites entre linguagens, aproximando do teatro a dança, as artes visuais, a literatura e a música.

  


Apresentação de Altamira 2042 durante o festival. Fotos: Lucas Emanuel/Divulgação

As escolhas dos trabalhos mostram a disposição do Trema! em provocar, especialmente levando em conta o tempo em que a maior parte do público ficou longe dos teatros e da experiência do teatro enquanto arte do convívio, do compartilhamento do mesmo tempo e espaço. A maioria dos espetáculos buscaram caminhos instáveis, com pesquisas que instigam o espectador, ao invés de tentar estabelecer um ambiente “acolhedor”. As obras colocaram em pautas temas ligados às políticas econômicas, de gênero, sexualidade, raciais, entre outras, e o público parece ter abraçado esse chamado, não só comparecendo aos espaços de apresentação, como também se conectando àquelas provocações. 

Os encontros, tanto nas salas de exibição quanto nos ambientes de espera, na rua, no pós, funcionaram como lembretes da potência desses corpos juntos, após tanto tempo apartados por conta da pandemia. Para além do público tradicional de teatro, foi possível observar também outros núcleos se aproximando dos espaços cênicos, o que, se incentivado ao longo do ano, como uma política de formação de plateia, pode reverberar a longo prazo. 

Aliás, essa é outra característica muito importante do Trema!, mesmo com as incertezas sobre fomentos e edições futuras, o festival entende-se como um local para se construírem pontes, expandirem horizontes estéticos, temáticos e físicos, com a inserção do Recife nas rotas de circulação nacionais e internacionais. Isso é particularmente simbólico quando se percebe a desarticulação das ações mais robustas (como festivais e mostras) para as artes cênicas (e outras artes) na capital pernambucana, nos últimos anos. E esse desmonte tem efeitos na cena cultural, pois o contato com visões de mundo distintas – e também as formações que os festivais costumam oferecer – têm um papel no fortalecimento da cena, inclusive no surgimento de novos artistas. 

Com os recursos de dois editais do Funcultura, o Trema! conseguiu também oferecer gratuidade para todos os seus espetáculos – o que também é uma vitória, principalmente quando se sabe como é oneroso trazer alguns trabalhos. Além dos mexicanos do Lagartijas Tiradas al Sol e da CRL – Central Elétrica, de Portugal, que apresentou o solo Feedback, com André Braga, também vieram para a cidade trabalhos do Ceará, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, entre outros. 


Mystura tropycal, dos cearenses do grupo No Barraco da Constância Tem!
Foto: Lucas Emanuel/Divulgação

A produção pernambucana também teve destaque, com apresentações no Recife e em Limoeiro, outra cidade que recebeu atividades de descentralização do festival. Alguns trabalhos, como Poema, solo de Edjalma Freitas, e Salto, do Bote de Teatro, foram montados em formato presencial, após terem estreado no online, durante os períodos mais críticos da pandemia. Outros, como re_Luzir, de Marconi Bispo, e Essa menina, de Roberta Ramos, mostraram que ainda há um interesse grande da cena contemporânea no biodrama ou no teatro-documentário (pesquisa também presente nas duas obras encenadas pelo Lagartijas Tiradas al Sol). 

O encerramento do festival com Manifesto Transpofágico é mais um ponto simbólico. O novo trabalho de Renata Carvalho, que se referencia também no biodrama, é resultado de uma pesquisa desenvolvida pela artista desde 2007, quando se tornou agente de prevenção em ISTs e HIV/AIDS. Renata passa a questionar e debater a historicidade da identidade travesti e seu lugar na arte. A artista, que também encerrou o Trema! em 2018, retornou ao Recife após os episódios de censura que sofreu em Pernambuco, ao interpretar Jesus como uma travesti, em O Evangelho segundo Jesus, a Rainha do Céu

No ano em que completa uma década, o festival foi, enfim, um respiro após o que enfrentamos durante esses quase dois anos. É, sobretudo, resistência após se reinventar nessas sete edições. Ainda não é possível dizer se haverá outras, afinal, o projeto foi dado como morto em 2019. No entanto, o que tivemos nessas duas semanas de festival, foi um vislumbre da potência e, especialmente, da importância da arte no papel de reiterar esses encontros, trocas e afetos entre o público e quem se apresenta. 


Ação no Teatro Hermilo. Foto: Lucas Emanuel/Divulgação

MÁRCIO BASTOS, jornalista e mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.

TANIT RODRIGUES é atriz, jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiária da Continente.

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