Cobertura

Tijuana e Veracruz (não) são aqui

Desvelando os contextos sociopolítico e econômico do México, duas peças da companhia Lagartijas Tiradas al Sol fazem do teatro veículo de profundas reflexões

TEXTO Márcio Bastos

25 de Abril de 2022

Gabino Rodríguez conta sua (suposta) experiência como trabalhador de uma fábrica em Tijuana

Gabino Rodríguez conta sua (suposta) experiência como trabalhador de uma fábrica em Tijuana

Foto Lucas Emanuel/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“A verdade também se inventa”, anunciava uma bandeira posicionada entre o palco e a plateia que ainda se acomodava nas poltronas do Teatro Apolo, no histórico Bairro do Recife, para assistir à peça Tijuana, da companhia mexicana Lagartijas Tiradas al Sol, apresentadas no último fim de semana como um dos destaques desta edição do Trema! Festival.  

A frase funcionava como um aviso, mas também como uma provocação: o que é a verdade, afinal? E que pactos se firmam para que ela se estabeleça? Esse jogo entre o real e o ficcional e os questionamentos sobre as estruturas políticas do México, que se assemelham à de outros países latino-americanos, como o Brasil, nortearam a encenação da obra. O mesmo aconteceu com Veracruz Nos estamos deforestando o Como extrañar Xalapa, que o grupo também apresentou no Lado A do festival (o Lado B do evento começa nesta terça, 26, e segue até 1º de maio, com programação inteiramente gratuita). 

Os dois trabalhos fazem parte do La Democracia en Mexico (1965-1985), projeto que o coletivo vem desenvolvendo há alguns anos e que pretende mapear artisticamente a complexidade do país, a partir de obras que abordam os 32 estados mexicanos. Tijuana estreou em 2016 e foi escrita por Gabino Rodríguez, um dos fundadores da Lagartijas. É ele, também, quem estava em cena e explicava à plateia como o trabalho foi pensado e desenvolvido: interessado em entender como um trabalhador mexicano vivia com o salário mínimo estabelecido pelo governo, ele se mudou da Cidade do México para Tijuana, na fronteira com os Estados Unidos, para trabalhar em uma fábrica. 

Para isso, adotou um outro nome, utilizou bigode falso e, com a nova identidade, passou a vivenciar uma rotina completamente apartada da sua experiência enquanto membro da classe média. Para registrar o que via e sentia, ele escrevia todas as noites em um diário, além de, às vezes, utilizar uma câmera escondida. Na conversa com o público, ele relata como a rotina massacrante e o dinheiro escasso vão, aos poucos, afetando seu estado emocional. Mesmo tendo em vista que aquele experimento teria uma duração limitada de seis meses, as privações e a desumanização que certas relações de trabalho pressupõem fazem com que ele coloque em xeque a forma como enxerga a sociedade e aqueles que pertencem às camadas mais vulneráveis. 

Além do olhar antropológico, ele também faz uma análise sociológica sobre o lugar escolhido. Tijuana é não só cenário, mas também personagem da peça. Sua geografia e história estão presentes durante todo o tempo e ajudam a fortalecer a ideia de que não estamos apartados da realidade que nos cerca – somos, em maior ou menor medida, moldados por ela. Os personagens citados pelo ator ajudam a criar um mosaico complexo de relações humanas e de como discursos que pleiteiam questões como meritocracia, violência e afetos são introjetados no imaginário coletivo. 

Mais do que confirmar se o relato de Gabino Rodríguez é ou não real, se ele passou, de fato, por aquelas experiências, é interessante perceber como os pactos entre artista e plateia vão sendo estabelecidos e quais recursos são usados para estreitar as percepções sobre o que se assiste. Para corroborar suas falas, o ator apresenta trechos do seu diário, fotografias e vídeos. Ele traz constantemente as sensações do processo, suas escolhas estéticas e questionamentos éticos (é correto se passar por outra pessoa? Ao não revelar quem ele realmente é, ele estaria traindo aqueles com quem estabeleceu vínculos, como a família à qual alugava um quarto? Se colocar em uma situação de quase pobreza como um experimento, enquanto outras pessoas vivem essa realidade diariamente, é correto?). 

As escolhas cênicas são inteligentes e impactantes. No fundo do palco, uma ilustração de uma avenida de Tijuana localiza a peça territorialmente, ao mesmo tempo em que parece evocar um tipo de construção mais lúdica. Uma beleza que contrasta com as imagens projetadas na tela posicionada no chão, que expõem a precariedade das moradias da classe trabalhadora, a aridez da terra, da vida e das relações de trabalho. Tijuana toca em temas dolorosos e difíceis sem soar panfletária – um problema que tem afetado muitos trabalhos que optam trabalhar com a ideia de “teatro do real” ou “teatro documentário”. 

Talvez pela própria natureza da obra, que joga com as noções do que é realidade e o que é ficção (e a zona cinzenta que existe entre esses conceitos), a mensagem chegue com mais força à plateia. Estão em discussão questões próprias do México, mas que também atingem outros países com histórico de colonização, escravidão, golpes de estado, desigualdade, violência e adoção de políticas neoliberais. E, mais importante, está em pauta como todos esses temas atravessam aqueles que tentam sobreviver e viver em meio ao caos.  

VERACRUZ É AQUI
Apresentado no dia seguinte a Tijuana, sábado (23), Veracruz Nos estamos deforestando o como extrañar Xalapa também se utiliza de elementos que dialogam com o real, mas partindo do formato peça-palestra, um fenômeno no teatro contemporâneo. Criada em 2015, a obra é encenada e desenvolvida por Luisa Pardo, fundadora da Lagartijas Tiradas ao Sol junto a Gabino. Na conferência, ela parte do assassinato da ativista e defensora dos direitos humanos Nadia Vera e de seu companheiro, o fotojornalista Rubén Espinosa, em 2015, para discutir a formação do estado mexicano e a forma como as relações de poder se estabeleceram, do massacre dos povos indígenas à violência contemporânea ligada ao narcotráfico. 

O formato de peça-palestra, muito em voga há alguns anos, coloca em destaque questões sobre a representação teatral. Em vez de um espetáculo, o público se depara com uma espécie de aula, um relato com toques acadêmicos que parece estabelecer outra relação entre quem está no palco e quem assiste. Ainda que de maneira distinta, propõe, assim como Tijuana, borrar os limites entre realidade e ficção. Luisa Pardo se coloca não só como narradora dos eventos, mas como participante deles. Relata sua relação com a região de Veracruz, paraíso natural onde nasceu e de onde vêm seus antepassados. 


Luisa Pardo é a "conferencista" da peça-palestra. Foto: Danilo Galvão/Divulgação

Com as folhas de papel em mãos, ela lê aquele relato sobre uma região, mas também sobre sua história. Imagens de arquivo e áudios entrecruzam a narração da atriz, reforçando os dados que ela apresenta à plateia. A complexidade da história mexicana, tão parecida com a brasileira, mas ao mesmo tempo desconhecida pela maior parte de nós, também mostra o quão apartado o Brasil está do resto da América Latina. Veracruz lembra muito o Rio de Janeiro, com sua beleza exuberante, disparidades sociais, violência e laços simbióticos entre Estado e narcotráfico. A peça coloca em evidência ainda a vulnerabilidade dos jornalistas em meio a essa estrutura corrompida, com mais de 16 assassinatos desses profissionais desde os anos 2000. 

Veracruz, assim como Tijuana, tensiona as crises da representação (e da representatividade) no contemporâneo. Um corpo pode falar pelo todo? Com quantos corpos se faz a história? E que história é essa? Quem pode narrá-la? São questões que o grupo não se propõe a responder, mas, antes de tudo, quer lançar para que o espectador construa junto, a partir de suas próprias percepções. E, com estratégias simples, mas eficazes, dramaturgias bem-construídas e profundas, Gabino e Luisa não só provocam um efeito imediato, como também reverberações profundas em quem assiste aos seus trabalhos. Veracruz e Tijuana, afinal, não são aqui. Não são? 

MÁRCIO BASTOS, jornalista cultural e mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.

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