FOTOS MARCELO SOARES
13 de Fevereiro de 2018
Intensidade, palavra que resume este que é o artista mais pop da música pernambucana atual
Foto Marcelo Soares
Olha eu aqui de novo/ Viver, morrer, renascer/ Firme e forte feito um touro. De coração aberto, cantando sobre “renascer” e “começar de novo”, com a certeza de que o amor é algo que nunca nos poderá ser roubado, como ele mesmo diz, Johnny Hooker encerrou a noite (segunda, 12) de maior público do 23º festival Rec-Beat até agora.
A ideia de um novo começo trazida por este artista pernambucano de 30 anos, e cantada ontem, em conjunto, por um “coral” de mais de 20 mil pessoas, ganha um significado especial nesta época, afinal todo mundo sabe que “o ano só começa depois do Carnaval”. Pois então, se estamos neste momento de transição, que mistura, dispersa e, ao mesmo tempo, renova as energias, podemos dizer que é também um tipo de anunciação do que está por vir…
Uma das mensagens fundamentais desse anúncio nos chegaram em letras vermelhas e fortes, escritas no telão do show de Hooker: é preciso, antes de mais nada, “Amar sem Temer.” Muito embora as manifestações críticas sempre tenham estado presentes desde a origem do Carnaval, a “festa da carne” carrega consigo um certo estigma que alimenta um sentimento apolítico para suas manifestações. Mas parece haver, neste ano de eleições presidenciais (sob a ameaça de não acontecer, diga-se de passagem), algo diferente no ar, em vários lugares do país. No palco, este que pode ser considerado hoje o artista mais pop da música pernambucana, mandou um “salve” para a escola de samba Paraíso do Tuiutí, que fez um desfile marcante no carnaval do Rio de Janeiro este ano, criticando a opressão sofrida pelo povo negro e todos os processos de perda de direitos que os brasileiros têm passado, lembrando que, sim, o sentimento é geral.
Público da segunda de Carnaval no Rec-Beat 2018. Foto: Marcelo Soares
Em entrevista à Continente, no backstage do Rec-Beat, pouco antes de subir ao palco, Hooker disse: “Esse ano eu enfrentei uma depressão muito grave, e o Coração foi uma resposta a isso. Uma vontade de renascer, uma vontade, um impulso de continuar vivo. Acho que ele fala muito sobre a esperança, a fé na humanidade, a fé nas pessoas. [...] Esse é um festival da resistência, este festival tem tudo a ver com esse disco. Tem tudo a ver com esse momento do Brasil, com esse momento político, social, é muito importante estar aqui”.
E foi assim, com sua potência catalisadora de multidões, que Hooker provou o quanto o Carnaval, o Rec-Beat e as pessoas permanecem vivas para ouvir música. Não poderia ser diferente: levou a plateia do Cais da Alfândega, no Bairro do Recife, ao êxtase. A maioria tinha suas letras gravadas no coração, como em 2016, ano de sua última apresentação no festival, quando tinha gente saindo pelas laterais do cais. O mesmo aconteceu este ano.
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“A música é importantíssima, especialmente nesse momento de estresse que a gente está vivendo. Estresse social, estresse político, democrático. A boa música é o que nos liberta”, declarou Gigi, de 63 anos, que veio curtir o Rec-Beat com as amigas. Assim que a DJ Grace Kelly, baiana da Chapada Diamantina radicada em Berlim, soltou os primeiros batuques de Depois que o Ilê passar, na voz de Caetano Veloso, o público foi chegando para a frente do palco, com diferentes danças, cores, brilhos e jeitos. Se “liberdade” é uma chave do Carnaval, da música, da arte, talvez um dos portões de abertura sejam o Cais da Alfândega.
Assim como a DJ, Pollux Frei também nasceu na Chapada Diamantina e hoje mora em Berlim, tendo morado ainda em Petrolina, no sertão pernambucano, e no Recife. Pollux, que se identifica como pessoa trans e atualmente está tomando medicação hormonal para completar a transição, prefere o Carnaval de Olinda, mas quando vem ao Bairro do Recife, é sempre ao Rec-Beat. “Eu vim no Carnaval pra descansar um pouco, porque a Europa é horrível, preconceituosa, racista, elitista. Eu vim pra recarregar minhas baterias. As pessoas aqui se amam, se ajudam, são mais empáticas. Hoje vim prestigiar Grace Kelly, que é minha amiga. Grace faz uma ponte entre as influências de Berlim, como o tecno, com coisas da nossa cena latino-america e dos sons daqui de Pernambuco e do Brasil, como o brega, o funk, criando uma linguagem própria. De certa forma, o som dela também me lembra minha própria história, essa coisa de pertencer a vários lugares do mundo, ou os nossos ‘não-lugares’, porque, em Berlim, lidamos muito com o ‘não-pertencer’”, disse.
Pollux rodou o mundo e costuma vir parar aqui, no festival.
Foto: Marcelo Soares
No público, Pollux também dançou ao som de João do Pife, de Caruaru (PE). Uma imagem bonita de se ver: olhar para o palco, ver João e sua banda vestidos de blusa xadrez e chapéu de couro, tocando um som tipicamente nordestino, e depois olhar para a plateia e presenciar Pollux dançando em traje estilo clubber de Berlim. No telão, imagens do mesmo Sertão onde Pollux morou. Convergência.
Entre os lugares (e não-lugares) do Carnaval, reduto também das festas privadas de camarote, pertencimento talvez seja um dos sentimentos que atravessam grande parte do público do festival, que tem acesso gratuito. Foi o que pontuou a estudante Marília Rocha, de 20 anos, fiel ao Rec-Beat todos os anos e em todos os dias do Carnaval. Na segunda (12), ela foi especialmente para os shows de Carne Doce e Xenia França. “Aqui no Rec-Beat tem todo o mundo que eu conheço, eu posso vir sozinha e vou sempre encontrar gente ou conhecer gente aqui. É um lugar super inclusivo, que você não se sente julgado, todo mundo se abraça. Você não se sente uma pessoa estranha por estar fora dos padrões que a maioria da classe média alta do Recife está. A diversidade te abraça e você se sente parte do Carnaval de verdade.”
João do Pife e banda pela primeira vez no Carnaval do Recife. Foto: Marcelo Soares
A CONSTELAÇÃO DE XENIA
Difícil não lembrar da noite de ontem sem destacar a apresentação da cantora Xenia França (mais uma baiana na noite!), revelação do festival. Há uma certa delicadeza “cortante”, um tipo de contundência sutil, no discurso da artista; discurso este que é a soma de todos os elementos de sua apresentação: desde sua própria imagem, de diva negra com longos cabelos crespos e figurino empoderado, às suas melodias, sua voz, suas letras, sua fala, sua postura em cena. Abriu o show cantando sobre apropriação cultural, de sua forma sensível e subjetiva, com Pra que me chamas?, misturando tambores yorubá a diversas influências, como jazz, soul, R&B, em apresentação que antecedeu o cantor branco que cita “macumba” e “orixá” em suas letras.
De vez em quando
Um abre a boca
Sem ser oriundo
Para tomar pra si
O estandarte
Da beleza, a luta e o dom
Com um papo
Tão infundo
A diva Xenia França em show do novo disco. Foto: Marcelo Soares
Ela também cantou sobre empoderamento do povo negro, e disse que era preciso ter muita “força no picumã!” - Respeitem meus cabelos, brancos, em arranjo autoral para a música de Chico Cesar. Saldou “todas as periferias do Recife”, e disse “não ao genocídio da mulher preta”. Escutar Xenia dizer “não ao genocídio da mulher preta” no mesmo palco onde, poucos anos antes, ainda se apresentava o grupo Quanta Ladeira, que fazia paródias, uma delas sobre “dar um pau se a mulher encher”, é olhar para o fato de que o festival vem dialogando com a contemporaneidade.
“É um processo de desenvolvimento, a gente começou a falar sobre esses assuntos mais enfaticamente agora. Tá sendo assustador para algumas pessoas ver mulheres negras subindo no palco e dizendo: ‘Não, não aceito, não quero assim, não admito ser tratada desse jeito!”, disse a artista em entrevista a Continente. Axé, Xenia!