Cobertura

Rec-Beat brinca escancarando a dor

Em sua 23ª edição, festival reafirmou sua proposta original e reuniu artistas engajados nas lutas pela democracia, igualdade e sobrevivência no cenário da música contemporânea

TEXTO TIAGO MONTENEGRO
FOTOS MARCELO SOARES

14 de Fevereiro de 2018

Otto e seu espaço de luta há 20 anos

Otto e seu espaço de luta há 20 anos

Foto Marcelo Soares

De punhos pro alto, como um lutador que se apresenta para mais uma batalha no ringue, o cantor Otto subiu ao palco do Rec-Beat 2018 na terça-feira (13/2), última noite do festival. Mais do que uma performance ovacionada por cerca de 20 mil pessoas que ocupavam, naquele momento, o Cais da Alfândega, o movimento do artista pernambucano resumiu bem o que se viu por lá ao longo dos quatro dias de programação: resistência. Logo ele que completa este ano 20 anos de carreira, sendo ainda hoje um dos nomes de vigor na música brasileira.

“Acho que o pernambucano e o brasileiro vêm lutando e precisam lutar muito ainda por mais consciência, humanidade, fim do racismo”, avaliou o cantor em entrevista transmitida ao vivo pela Continente, logo após o show. Em alusão a diversas manifestações populares de cunho político que se espalharam pelo país neste período, Otto destacou que "o Carnaval expõe muito mais os sentidos sociais. Numa hora em que a gente não tem governo, o Carnaval é maravilhoso, o povo se organiza, se reagrupa, o povo pede a paz, o povo se liberta, toma conta do outro".


Assim começou o show de Otto no Rec-Beat 2018. Foto: Marcelo Soares

O reencontro do artista com o público do Rec-Beat veio “num ano em que a democracia não está nos jornais, tá escondida e o povo é que tá na rua”. Veio também um dia após a morte de seu pai, o médico Marconi Ferreira. Com a consciência de se sentir “parte da engrenagem da máquina do carnaval de Pernambuco”, Otto expurgou a dor fazendo um show de celebração da vida e recebeu em troca um abraço gigante do Recife, especialmente durante a interpretação histórica de Naquela mesa, música de Nelson Gonçalves gravada por Otto em seu penúltimo álbum, o Certa noite acordei de sonhos intranquilos.

Fã do artista, a estudante paraibana Janaína Melo falou sobre o momento: “Foi como dar os pêsames e agradecer ao mesmo tempo. Tenho diferentes catarses quando assisto a um show dele e dessa vez a conexão foi ainda muito forte”.


E quando a chuva começa... Foto: Marcelo Soares

VIVER DA ARTE EM PERNAMBUCO
O exercício de brincar sem esconder a dor também foi tônica do show de Romero Ferro. Abrindo a apresentação do Frevália com Morrer em Pernambuco, frevo do compositor Juliano Holanda, Romero jogou luz sobre as dificuldades do fazer artístico – e de viver da arte – no Brasil. “A gente sabe como é difícil, por isso é tão especial estar aqui neste que é um dos festivais mais importantes do país e do mundo fazendo música pernambucana, fazendo frevo, mostrando o frevo repaginado, o frevo novo”, comentou.

O cantor e compositor passou o ano de 2017 reunindo intérpretes da nova cena musical pernambucana em apresentações no Paço do Frevo e em espaços alternativos da cidade. “Acho que o caminho da união entre os artistas é uma saída para fortalecermos a cena local e estimular o consumo das produções atuais. Acredito que esse movimento pode ser ainda maior e tem que vir de todos os lados: governo, artistas e público”.


A cantora Michelle Melo e Romero Ferro no projeto Frevália. Foto: Marcelo Soares

Interpretando Tão chic, frevo de Adriana Calcanhoto, Romero também trouxe à tona a pauta do empoderamento feminino: “Tudo isso significa muito nesse momento que a gente tá vivendo, é preciso cantar e frisar isso porque, às vezes, algumas questões passam despercebidas e não podem mais passar”. Convidada para o show de Romero no Rec-Beat, a rainha do brega Michelle Melo definiu sua participação “como uma conquista do povo que passa o ano todo trabalhando nesse estado e que deveria ter sempre um espaço garantido nos períodos de festa”.

REFERÊNCIA TREMENDA E ATENTA
Escalado para encerrar a programação do Rec-Beat 2018, Erasmo Carlos parece ter muito a dizer à juventude. Entre novas canções e clássicos como É proibido fumar e Mulher (sexo frágil), não foram poucas as vezes em que o cantor, com mais de cinco décadas de carreira e um dos pilares do rock brasileiro, utilizou o microfone para lembrar – ainda que de forma sutil – o cenário político que o país atravessa.

“É triste perceber que a situação está piorando nos últimos tempos. Antigamente, a procura era por um ombro amigo, agora é por um ombro amigo e honesto, coisa quase impossível nesses dias”, comentou antes de interpretar o hino É Preciso dar um jeito, meu amigo.


Erasmo Carlos e seu recado à juventude. Foto: Marcelo Soares

Seu mais recente trabalho, o disco Gigante gentil, foi produzido por Pupilo (Nação Zumbi), informação ressaltada por Erasmo durante o show, num ato de aproximação do artista com o público recifense e, de uma maneira especial, com a juventude. Um aspecto que parece ganhar relevância no atual momento de sua carreira e pode ser percebido também na concepção artística do show, com projeções de videoclipes, e ainda nos versos da canção-título do álbum, uma resposta gentil a comentários nada respeitosos em seu perfil no Twitter:

Mas quando dizem que o gigante é um morto-vivo
Perdido como um bicho sem carona no dilúvio
Me assusto com o olho podre que vê ele assim
Detonam o gigante e o estilhaço pega em mim

“Nossa proposta é o amor e a comunicação”, levantou Erasmo no início do show. Uma performance aplaudida por um público fiel e, em boa parte, jovem, que cantou junto os sucessos do Tremendão e voltou pra casa com mensagens de viva “ao amor, à paz, à honestidade e à amizade”.

BALANÇO
Em meio à correria para fazer tudo funcionar perfeitamente numa noite de muita chuva no Recife, o diretor geral e curador do Rec-Beat, Antonio Gutierrez (Gutie), conversou ao vivo com a revista Continente e avaliou a edição deste ano:. “O festival cumpriu o conceito que a gente definiu há mais de 20 anos, que é ter cenas local, nacional e internacional representativas, que apresentem o frescor e as novas tendências. Perceber que o público vem disposto a ver e ouvir produções diferentes tem nos dado bastante liberdade para programar o festival e incluir a música que circula à margem, como o brega funk e o novo rap”. 

Além de Romero Ferro, Otto e Erasmo, a última noite de shows contou ainda com as apresentações do coletivo de DJs e músicos ingleses Worm Disco Club, que discotecaram raridades sonoras de diversas partes do mundo; com o francês Bernard Fevre (Black Devil Disco Club), pioneiro no desenvolvimento de versões eletrônicas da disco music; e ainda com o projeto Rimas e Melodias (SP), que une mulheres artistas de destaque no cenário do hip hop nacional e que contribuíram para a visibilidade de pautas, como empoderamento feminino e cultura negra.

veja também

“Esse é um festival da resistência”

O som que vem delas

"Todo rapper de Pernambuco tem influência do brega"