FOTOS MARCELO SOARES
12 de Fevereiro de 2018
Larissa Luz, uma das expoentes da cena musical da Bahia hoje
Foto Marcelo Soares
Quem é do Nordeste entende, mas o dicionário de nordestinês também explica: “enfurecer-se, ficar brabo ou bravo”; “afobamento, irritação, emputecimento”. Arretar-se, arretado, arretação, arretamento; seja como for, o significado de “me arrete não” ou “tô arretada com você” é entendido até por gringo se dito em voz alta, ainda mais com mão na cintura ou o dedo em riste. É semântica que se realiza no corpo, no gesto, na cena. O projeto Arrete, composto por três MCs e duas dançarinas do Recife, pode ser entendido nessa linha. E quem viu as meninas no palco da segunda noite do Rec-Beat 2018, no domingo de Carnaval (11/2), não precisou de legenda: "Não é não"! "Sai 'miséra', arrete não"!
Um show-manifesto, poderíamos dizer da apresentação e da música que fazem as MCs Ya Juste, Nina Rodrigues e Weedja Lins. Tem rap, hip hop, eletrônica, pop, ragga; tem representatividade, feminismo, discurso; tem poesia, rima, Nordeste e orgulho de sê-lo. “A gente tá na correria, na cultura hip hop há 17 anos. Dezessete anos não são 17 dias, a gente já passou por preconceito, discriminação, violência. O que a gente passa nas nossas letras é tudo que a gente sente, tudo que aconteceu. Arrete não, (a música é) uma denúncia de agressão”, explicou Weedja Lins em entrevista ao vivo para a página da Continente no Facebook. Na mesma fala, emendou: “Ter a oportunidade de tocar no Rec-Beat e mostrar pra galera é uma felicidade enorme, que através de palavras, a gente não sabe descrever. A gente era garotinha de Youtube que não ia durar, e nós estamos aqui para mostrar o contrário. O nome Arrete não é em vão não, é porque a gente arreta mesmo”.
Artistas do projeto Arrete. Foto: Marcelo Soares
Apesar de integrarem a cena hip hop há quase 20 anos, elas iniciaram o projeto em 2012, tendo disco lançado pelo caminho, o Sempre com a frota. O álbum foi o primeiro de um grupo de rap pernambucano a ser incentivado pelo Funcultura e guiou o repertório do show, que teve participação de Rany Huston (dancer, cantora, atriz) e Preta Ana (cantora, voz nagô). Segundo o produtor e curador do festival, Antônio Gutierrez, elas representam hoje o que há de interessante e atual sendo feito na música do estado – decerto, ainda existe um longo percurso de amadurecimento artístico pela frente. E chamou atenção para o protagonismo das mulheres nessa nova cena independente – aqui e fora –, o que tem feito elas terem, “naturalmente” e “pelo talento”, uma participação mais intensa no palco do Rec-Beat.
Não esqueçamos: a arte é uma forma de arretar e o arretar teve, é preciso que se diga, um lugar de fala muito evidente nesse segundo dia da programação do festival (e possivelmente do terceiro): o das mulheres – e tudo que pese sobre o sentido deste substantivo, mais ainda quando o adjetivo que acompanha é “negras”.
MIREM-SE NO EXEMPLO
Enquanto a DJ FlavYa (Alemanha/EUA) intercalava o som da noite, avistamos duas mulheres vestidas com capa vermelha e chapéu branco (do tipo grande viseira de antolho) circulando pelo público do Cais da Alfândega, no Bairro do Recife. As duas estavam vestidas com o figurino da série The handmaid’s tale (Hulu), que fez sucesso em 2017 por trazer para os dias atuais a história do romance homônimo de Margaret Atwood. Para quem não conhece, foi uma das séries mais assistidas e premiadas do ano passado, e traz justamente ao centro da discussão contemporânea a liberdade das mulheres quando impostas a um regime de extrema opressão, como é o caso da obra. “A mulher tem tido uma abertura, ainda pequena, para se posicionar, se expressar no mundo hoje. Na série, as aias (as poucas mulheres férteis que restaram de um mundo cruel) são escravas sexuais, obrigadas a reproduzir. São torturadas. E a mulher no Brasil sofre isso, de outra maneira. Então, nossa fantasia é política”, afirmou à Continente Magda Barreto, uma das personagens. A amiga Catarina Almeida concordou e reforçou a seriedade da fantasia, dizendo preferir o Carnaval do Recife, apesar de ser carioca, por ser mais “criativo”, “político” e “libertário”.
As aias deixaram o Rio para virem ao Recife.
Foto: Marcelo Soares
Ambas foram ao Rec-Beat motivadas principalmente pelas mulheres que se apresentariam naquela noite, que também recebeu os shows incríveis de Lucas Estrela (PA), Javier Díez_Ena (Espanha) e do rapper Don L (CE). O nome mais aguardado era o de Larissa Luz, uma das expoentes da cena contemporânea baiana. Afinada ao discurso de resistência das feministas, principalmente negras, a cantora atraiu muitas outras mulheres ao público do Rec-Beat – o que deverá acontecer também nesta segunda (12/2), com os shows de Fémina (Argentina), Xênia França (BA) e, de certa forma, Johnny Hooker (PE).
“Gosto demais de Larissa Luz. Nunca fui a um show dela, mas já tinha expectativa de ela vir ao Recife. Quanto mais mulheres, mais feministas, mais empoderadas e fortes estiverem em cima do palco, melhor. Ela canta o que eu gostaria de dizer, canta por mim também. Que existam mais Larissas e mais luz no mundo”. A cantora Mayra Clara, autora da fala, também estava no público do Rec-Beat no domingo (11/2). Vestia-se de Carmen Miranda “passista”, fantasia emprestada da avó, Maria das Dores Vitorino, a quem deve a sua criação. “Minha avó é minha maior referência. Artisticamente, na vida. Ela canta, dança, desfila em bloco. Quando crescer, quero ser minha avó”, disse ela, reforçando também seu amor pelo festival. “Carnaval sem Rec-Beat, para mim, não é Carnaval.”
Mayra Clara de Carmen passista. Foto: Marcelo Soares
Mayra certamente não se decepcionou com o show de Larissa Luz, que segurou um público de 15 mil pessoas, segundo Gutierrez, ao longo da noite, ocupando quase todo o espaço do Cais da Alfândega. Público este diverso, que cantou quase todas as músicas dela em coro, indo ao delírio em momentos como a homenagem à escritora Carolina de Jesus, à diva Elza Soares e outras mulheres negras, exaltadas nas letras do repertório e no espetáculo que Larissa e as bailarinas Gabriela Sampaio e Érica Ribeiro dão em cena. Apesar da decadência do axé music, a Bahia segue demonstrando competência para o mercado e a produção fonográfica, sabe se vender.
Larissa cantou seu repertório autoral, mas também se garantiu nos tributos ao Ilê Ayê, Timbalada, Olodum e outros clássicos baianos, além de covers de Yellow Man e Isley Brothers, tudo com a identidade que ela sabe imprimir ao trabalho (saiba mais aqui).
Larissa, a luz. Foto: Marcelo Soares
Ponto alto para a interpretação de Meu sexo:
Despudorada
Empoderada
Eu não abro mão do meu sexo
Dou uma virada
Uma gargalhada
Sim! Eu quero ser o meu sexo
Quero acontecer sem ter que dizer
Ei!! É o meu sexo!!!
E Bonecas pretas:
Um caso contestável
Direito questionável
Necessidade de ocupar
Invadir as vitrines, lojas principais
Referências acessíveis é poder pra imaginar
Mídias virtuais
Anúncios constantes
Revistas, jornais
Trocam estética opressora
Por identificação transformadora
Procuram-se bonecas pretas
Procura-se representação!
Larissa com as dançarinas lacração Gabriela Sampaio e Érica Ribeiro.
Foto: Marcelo Soares
***
Em conversa depois do show, Gutierrez reiterou a potência da cena musical baiana, avaliando como a “mais quente” do Brasil neste momento: “Já trabalhei com o Baiana (System), Russo Passapusso, Ifá, Attooxxa. A cada ano, tem mais opção. Este ano, são duas baianas (Larissa Luz e Xênia França), mas poderia ter mais, até”.
Sobre a participação das mulheres em seu festival – tanto no front quanto no backstage –, ele disse: “Não faço curadoria por cotas. Pensar dessa forma é menosprezar o talento das mulheres. A mulher não precisa de favor, isso é humilhante. Elas estão mais presentes no festival porque merecem, por conta do talento. Elas estão produzindo mais, então naturalmente estão mais no Rec-Beat, estão à frente dessas cenas”. E haja luta.