Cobertura

Nas profundezas do sal de Selina

Cicatrizes do passado levam a artista inglesa-jamaicana a revisitar questões relacionadas a noções de lar, esquecimento e colonialismo em seu espetáculo 'Sal'

TEXTO PEDRO VILELA, DE SÃO PAULO

10 de Março de 2018

Selena Thompson em 'Sal'

Selena Thompson em 'Sal'

Foto Guto Muniz/Divulgação

Este é um texto afetivo; ou melhor, sobre a capacidade que as coisas possuem de nos afetar. Talvez palavras escritas sob emoção, ou uma constatação.

Tenho estado a assistir tantas coisas. Tantas mesmo...

Cobrir um evento como a MITsp sempre se torna uma jornada intensa. São espetáculos, debates, encontros e desencontros com pessoas dos mais variados lugares do mundo. Pessoas que atravessaram oceanos para estarem aqui.

Selina Thompson foi uma delas. Selina tem tido a prática de atravessar oceanos. Ela criou uma obra sobre isto: Sal. A artista de 27 anos que distribui pequenas pedras de sal ao final da obra. A artista a quem gostaria de ter ofertado um afeto, um carinho, um repouso. Não feito isto, escrevo.

A vida tem sido dura para o povo negro em diferentes lugares do mundo. Não percamos tempo comparando territórios. Por aqui, atualmente, há uma intervenção militar, veladamente direcionada ao povo negro.


Selina em 'Sal'. Foto: Guto Muniz/Divulgação

É difícil escrever sobre tudo isso. A incapacidade de dimensionar a dor do outro particularmente me envergonha. Esta é uma tentativa. Eu que nunca fui perseguido em um supermercado por acharem que cometeria um roubo. Eu que, com a liberação de entrada em diferentes países, nunca fui abordado ou revistado.

Mas algo me une a Selina. Me interessaria apresentar a ela minha cidade banhada pelo mar, pautada por portos históricos deste fluxo intenso de escravos que você procurou reviver. Água salgada para "negros torsos nus" que "deixam em polvorosa, a gente ordeira e virtuosa", parafraseando Chico Buarque.

Tenho nutrido o desejo de realizar uma obra sobre colonialismo, ainda que até o presente momento nem saiba por onde começar. Selina me fez pensar se realmente devo fazê-la. Solicitou até um passo atrás quanto à minha leitura sobre outro espetáculo da mostra, Palmira, no qual mais uma vez brancos europeus nos dizem algo sobre um território alheio. Estou em um lugar de privilégio de fala.

Selina não precisa apresentar passaporte africano para validar sua obra. A viagem de retorno aos países de seus ancestrais carimbam sua fala. Não é um passeio de cruzeiro, hidronatação, comida dia e noite. É navio negreiro, navio cargueiro, transporte fluvial sobre veias abertas, de tantos outros negros que atravessaram o oceano e foram escravizados em outros continentes. A diáspora...

Cicatriz tão exposta que a dor individual torna-se um excelente ponto de partida. As profundezas do oceano levam Selina a revisitar questões relacionadas a noções de lar, esquecimento e colonialismo. Após tantos anos do fluxo de sua família da Jamaica para o Reino Unido, sua cor ainda demarca a sensação de ser estrangeira em seu próprio lar.

Seu pai pediu para que neste trajeto, Selina nunca se esquecesse de que era uma mulher. Negra. Uma mulher negra nesta jornada sobre a diáspora, substantivo feminino de origem.

É preciso encarar tudo isso. Marretar as pedras que insistem em ficar no meio do caminho. A Europa empurra Selina, e ela empurra de volta. O mundo empurra os negros. Bravamente, estes têm empurrado de volta.

E sim. Isso me afeta profundamente.

PEDRO VILELA é diretor, curador, ator e um dos idealizadores da Trema! Plataforma de Teatro.

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