Dificil achar algum tema relativo ao autor que ainda não tenha sido abordado no evento. A verve militante e anarquista, a bravata contra o futebol e o Carnaval, a tensão com as questões raciais de sua época, a relação com seus pares, o nacionalismo, a prosa objetiva e amargurada – às vezes trágica, às vezes bem-humorada –, o fato de ser “moderno antes dos modernistas”.
Tudo tem sido esmiuçado. Tanto por acadêmicos veteranos, como Antonio Arnoni Prado (um dos primeiros a defender uma tese no pais sobre o autor, em 1983, na USP), como pelos “limistas” da novíssima geração, a exemplo de Felipe Botelho Correa, professor da King's College, em Londres, que encontrou e publicou 164 textos inéditos de Lima Barreto há pouco mais de um ano.
Num dos momentos mais animados do evento, a relação de Lima Barreto com os subúrbios foi cantada com um ponto de umbanda e um samba-enredo. Em outra ocasião marcante, professores da rede estadual estenderam uma faixa à entrada da Flip, em protesto ao sucateamento do ensino publico: “Triste fim dos Limas Barretos”. Nos megafones, faziam as mesmas queixas já queixadas por Lima em sua crônica social há cem anos. "Querem despovoar o país pela miséria", escreveu ele, em 1915. Nada mais “limista”, portanto.
Mas a pergunta que fica no ar é: agora que a importância de sua obra foi reafirmada, de que forma o evento faz avançar as discussões criticas acerca da obra de Lima Barreto? Para onde vai Lima Barreto depois da Flip?
Numa das falas da sua biógrafa, a historiadora Lilia Schwarcz, uma questão indicou uma possível resposta, a de que talvez sua obra agora caminhe em direção aos mais jovens: "Quem sabe agora, com a juventude animada pela luta pelos direitos civis, estejamos mais prontos para a obra de Lima Barreto?"
Na avaliação de Felipe Botelho Corrêa, o mérito desta Flip nem é tanto criar algo novo, mas reunir e divulgar os trabalhos que vêm sendo feitos sobre Lima: "Em 2004, já começa uma nova etapa neste trabalho de memória da obra de Lima Barreto, diferente daquele que já estava colocado pelo Francisco de Assis Barbosa nos anos 1950, com a reunião das suas crônicas no livro Toda crônica, da Beatriz Rezende e Rachel Valença", diz ele. "Depois, a Lilia solta o Todos os contos, e começa a trabalhar nessa biografia de Lima, lançada agora, o Triste visionário. As fotos começam a aparecer. Começa uma discussão sobre um cânone afro-brasileiro, que o Edmilson Pereira pontuou tão bem na mesa dele, e que não tinha tanto peso antes. Mais recentemente veio o meu livro, com o restante das crônicas que não se sabia serem dele. O que eu acho que a Flip faz é reunir esse material e colocar essas leituras todas em contato, para poder gerar algum tipo de faísca ou consolidação."
Citado por Felipe e também participante do evento, o escritor, poeta e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Edmilson Pereira acredita que, para que os debates críticos sobre o autor sejam levados adiante, é preciso que se discuta uma nova perspectiva metodológica, menos eurocântrica, acerca do cânone afro-literário brasileiro.
"Eu venho com a seguinte perspectiva: dentro do campo universitario brasileiro, há algumas linhas de forca e de análise da própria literatura brasileira. Uma dessas linhas relaciona muito a historiografia, ou seja, a compreensão dos processos da sociedade brasileira, sobretudo no século XIX, a construção do modelo escravista etc. Esse fundo historiográfico ajuda a criar uma linha de interpretação da literatura como um diálogo com essas transformações que o pais vem apresentando, da literatura como uma releitura crítica. Isso vai gerar um conjunto de autores, com destaque para Machado de Assis e Lima Barreto, que vai dar um destaque para essas transformações sob o ponto de vista de cada um, o Machado num eixo de psicologia dos personagens, e o Lima numa certa leitura cronista dessas mudanças. Essa linha é muito forte na UFRJ, na UERJ. Eu acho que é uma linha riquíssima, principalmente para entender a obra de um Machado. O Lima agora é recuperado para o grande público, não para a academia, com essa mesma perspectiva."
O que Edmilson avalia é que, nas últimas três décadas, o país passou por mudanças significativas, com maior inserção de setores populares nas universidades, o que trouxe avidez por conhecer, além da historiografia oficial, a sua própria história, que é uma história de marginalidade.
"Com o aporte dos Estudos Culturais, que vão trazer os diferentes processos de formação da cultura, com destaque para as diferentes vozes que formam essas culturas, como os negros, as mulheres, os transgêneros etc., aliado ao maior fluxo de pessoas nas universidades interessadas por suas histórias, não dá mais para ler a literatura produzida no Brasil apenas com a perspectiva do processo anterior."
Para Edmilson, essa avidez por uma revisão histórica do país dos novos grupos que entram nas universidades obrigam também a revisar as obras de autores negros inscritas no cânone brasileiro, como a de Lima Barreto. Mas agora sob uma nova perspectiva, que cria uma nova metodologia afro-diaspórica, considerando, por exemplo, os conceitos baseados em cortes étnicos e raciais. Por exemplo: ao analisar os congados mineiros, um dos seus objetos de pesquisa, Edmilson isolou seus cantos e analisou de que forma as narrativas estavam a serviço de uma reinterpretação das estruturas sociais. A partir desse movimento, uma mudança de eixo interpretativo, torna-se possível a construção de um cânone, aí sim, afro-diaspórico.
Para ele, portanto, a obra de Lima Barreto no pós-Flip ainda deve ir muito, muito longe.
"A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela." Cemitério dos vivos, Lima Barreto
MARIANA FILGUEIRAS, jornalista do Rio de Janeiro, mestranda em Literatura na Universidade Federal Fluminense.