Acontece que a gente só não sabe quando esse futuro vai chegar, mas insiste. Persiste, resiste.
Lembrei de Tatuagem no último domingo (16), enquanto assistia ao espetáculo Assembleia comum, da mineira Trupe Luiz Estrela, dentro do FIT-BH. A peça foi apresentada na Ocupação Dandara, na região da Pampulha, que surgiu há 10 anos e onde vivem hoje 1800 famílias. A princípio, a lembrança do filme me veio pela imagem da trupe em desfile pelas ruas sem calçamento, cercadas de casas com tijolos aparentes, com os artistas seguidos de crianças que estavam ali desde cedo à espera do teatro. Era uma cena semelhante àquela do filme de Hilton Lacerda, de quando os atores de Chão de Estrelas saíam pelas ladeiras de Olinda fantasiados a convidar o público para assistí-los.
Tanto em Tatuagem quanto em Dandara, o teatro é um simulacro da vida real, projeção do sonho de um futuro livre. Se no filme, o grupo Chão de Estrelas concentrava naquele espaço marginal, em pleno Brasil da ditadura militar, as utopias do amor idealizadas na relação entre um ator e um soldado, em Assembleia comum é a realidade distópica desse Brasil de agora que norteia a alegoria do desejo de um mundo igualitário.
No caso mineiro, a ficção nasce da experiência vivida. A Trupe Luiz Estrela foi criada dentro de uma ocupação social no centro de Belo Horizonte. Leva esse nome em homenagem ao artista mineiro cuja obra alinhava discussões sobre loucura, arte e direito à moradia. Na peça, à valia do teatro de oprimido, o grupo discorre sobre a força do capitalismo e do fascismo contra a revolução social. Os personagens se apresentam diante do público, como em uma audiência, em defendem o que pensam e sua presença na sociedade: entram de um lado do jogo o Afeto, o Amor, a Revolução e a Natureza; e do outro, a Morte, a Miséria, a Alienação, o Ódio e o Patenteador.
Encenação foi apresentada ao ar livre FOTO: Alexandre Guzanshe/Divulgação
Os discursos dos personagens dão conta de apresentar os problemas sociais atuais do nosso país, como o consumo e o capital cegos, a miséria como pseudo fator de equilíbrio da cadeia e a comunicação em massa a favor da demência da sociedade. Isso contraposto às chaves de luta para essa transformação que passam, na montagem, pela feminilidade vinda do amor, do afeto, da natureza e da própria morte. O feminino, aqui, serve como potência de um ciclo de mudança, pontapé para o novo. Não à toa, a resistência, substantivo feminino, nesse sentido, domina a fábula como heroína do hoje e do futuro.
Não à toa o trabalho de fez lembrar do filme de Hilton Lacerda. Na estética teatral utilizada pelo diretor Rafael Bottaro estão, como no longa-metragem, o uso de humor, sátiras e músicas – algumas até sem muitos pudores – que dão conta de dialogar com a "tragicomédia" do Brasil começada na colônia e estendida até hoje.
A peça foi apresentada ao ar livre para famílias que vivem em Dandara. O discurso de resistir, de ocupar e se apropriar da terra que é comum a todos encontrou facilmente ecos naqueles ouvidos. Teatro carnavalizado, cujo maior compromisso é com o suporte da fala política, Assembleia comum logo se fez espelho daquelas pessoas e não obstante tomou a atenção de quem ali está.
Olhar Dandara e ver nela um reflexo das lutas sociais atuais e, mais que isso, a concretização de políticas do povo me fez pensar, como disse, no futuro do amor e da liberdade. Nesse sentido, a carnavalização do teatro vem se juntar a essa forma nossa de tentar subverter o que está posto. No espetáculo, se nos faltam políticos, assumimos a nossa política. Se nos negam as terras, resistimos. E assim Tatuagem e Assembleia comum continuam próximos no meu imaginário, como cartazes colados nos muros para lembrar da possibilidade de transformação pela micropolítica.
Talvez um dia eu reencontre o papel colado nas ruas; mas, principalmente, talvez um dia a gente encontre o futuro como no filme – e na peça.
MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.
* O jornalista viajou a convite da organização do FIT-BH.