Cobertura

O calvário de Renata Carvalho no FIG 2018

Depois de ser retirada da programação oficial do Festival de Inverno de Garanhuns este ano, atriz trans encena a peça 'O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu' sob ameaça de pastor e polícia

TEXTO SAMANTA LIRA, DE GARANHUNS*

28 de Julho de 2018

A atriz veio de São Paulo e resistiu fazendo o espetáculo de forma precária, sob grande tensão

A atriz veio de São Paulo e resistiu fazendo o espetáculo de forma precária, sob grande tensão

Foto Cedida gentilmente por Mariana Mesquita/Folhape

Dois homens caminham por uma rua deserta. É noite. A neblina cobre a paisagem diante dos olhos. Aos poucos, o caminho vai se revelando através da fumaça branca. Logo se avistam mais três pessoas vindo na direção contrária. “Vocês também estão procurando?” O grupo dos que procuram cresce cada vez mais. Estão indo atrás de Jesus. O ano é 2018 e a rua fica em Garanhuns, município do agreste pernambucano.

O episódio aconteceu na noite desta sexta-feira, 27 de julho, e é mais um capítulo de censura sofrido pela atriz trans Renata Carvalho e sua peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu. Se o caminho até o local da apresentação foi difícil de encontrar, o que estava por vir seria ainda mais desafiador. Aqueles quase 30 minutos perdidos era apenas uma das dificuldades para quem iria testemunhar o Evangelho da Rainha do Céu.

A encenação foi censurada em Jundiaí (SP), Salvador (BA), Rio de Janeiro e no próprio município de Garanhuns, semanas antes de o festival começar. A justificativa é sempre a mesma: de que desrespeita a religião pelo fato de ser interpretada por uma travesti. Uma vez retirada da programação do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), a peça foi abraçada de forma independente por um grupo, na criação da campanha A liberdade TRANSforma, encabeçada por Rodrigo Dourado e Chico Ludermir.

Através de financiamento coletivo, a apresentação ganharia duas sessões independentes na sexta (27/7). A das 17h ocorreu tranquilamente. A das 21h seria “dividida” com a Fundarpe para cumprimento de determinação da Justiça de reinseri-la na grade oficial do festival, sob ameaça de multa. Acontece que, ao finalmente encontrar o local onde Renata se apresentaria, o público foi recebido por vários carros da polícia, que anunciavam mais uma reviravolta: o desembargador Roberto da Silva Maia havia acatado o pedido da Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região, proibindo esta segunda encenação do espetáculo no FIG.

Sob gritos de “não vai ter censura”, o público conseguiu entrar na casa de festas do bairro de Heliópolis, o lugar de sede. Em entrevista à Continente, Chico Ludermir desabafou: “Na primeira exibição, as coisas aconteceram de uma forma muito tranquila, foi um espetáculo belíssimo, as pessoas aplaudiram incansavelmente, como tem que ser quando a gente escuta uma travesti falar. Mas, desta vez, pelo conservadorismo e pela proibição, a gente está tendo muito conflito”.

O que se viu depois disso podemos chamar de resistência. Os agentes da Justiça retiraram toda a estrutura que pertencia à Fundarpe e serviria de apoio ao espetáculo: a luz, o som, o toldo, as cadeiras. Isso tudo, inclusive, no momento em que Renata já havia dado início à apresentação. Só não levaram o direito dos presentes de resistir. O tumulto e a gritaria se espalharam, até que atriz conseguiu dar continuidade à encenação. Num canto perto da piscina, muitos em pé, embaixo de chuva. Resistiram. E testemunharam Jesus num corpo trans.


Imagem: Cedida gentilmente por Mariana Mesquita/Folhape

Com seu casaco de couro branco, uma maleta na mão e um rosto maquiado – mas que não escondia o cansaço de mais uma rejeição –, nos provocava, num monólogo que denunciava a intolerância e a transfobia. Não haviam dúvidas, era Jesus, era Renata, eram todas as trans ali. Nada ofende. O que causa tanto ódio, na verdade, é a construção social dessa identidade, constantemente violentada.

Lá, encontramos o jornalista, militante dos direitos humanos e vereador do Recife pelo PSOL, Ivan Moraes, que prestigiou Renata Carvalho também na primeira sessão. Ele defendeu que a mensagem principal da peça (o amor, o perdão, o afeto e a aceitação) condiz com os valores cristãos, e lamentou que “é muito triste ver pessoas que não a conhecem se esforçando tanto para que a estrutura da Fundarpe seja retirada”. Por outro lado, pontuou que é fortalecedor ver tanta gente resistindo. “A censura não vai ser aceita aqui. A arte sobreviverá e a liberdade de expressão também”, completou.

Responsável pela direção, Natalia Malo também falou à revista: “Foi uma noite muito emocionante, em que a gente presenciou vários embates, várias instâncias se posicionando. Mas o saldo é positivo, porque o público está com a gente, a peça aconteceu, e isso é o mais importante.”

NOTA OFICIAL: Secult e Fundarpe informam que o Mandado de Segurança deferido pelo Desembargador Roberto da Silva Maia, impetrado pela Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região, continua impedindo o Governo do Estado de realizar o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu dentro da programação oficial de artes cênicas do FIG 2018, que termina neste sábado (28). Quanto às apresentações independentes do monólogo, ocorridas na sexta-feira (27), as mesmas transcorreram em segurança, sob proteção do Estado, mesmo tendo ocorrido um momento de tensão na ação da Justiça ao informar o Mandado de Segurança.

SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

*A repórter viajou a Garanhuns a convite do festival, realizado pelo Governo do Estado de Pernambuco.

Publicidade

veja também

Subir ao palco e resistir

O peso que é poder flutuar

Negritude deu um viva à liberdade em Garanhuns