A presença do cantor e compositor baiano Giovani Cidreira deu início a shows que marcam a música contemporânea no Brasil de matriz afro. Um corpo negro, que pisava repetidas vezes com seu tênis de cano alto, nos dizia: “Estou aqui”. Um protesto à altura de versos que atravessam o território particular do artista, aproximando-se dos tormentos de qualquer ouvinte. “Já já eu me jogo nos braços de vocês”, brincou Giovani ao convidar uma plateia ainda tímida para se aproximar ao palco. O gelo logo foi quebrado com a sua canção Pássaro prata, entre as mais conhecidas pelo seu público. Vibraram. O entrosamento foi tanto, que até se viu o músico tomar um gole da bebida de uma pessoa da plateia.
Num discurso politizado, a cantora Xênia França, também parte da nova cena baiana, mas radicada em São Paulo, deu continuidade à energia da noite. Apropriação cultural e empoderamento do povo negro foram questões que permearam a sua apresentação. Na plateia, ouviam-se elogios a uma beleza completa. Com seus longos cabelos crespos, o figurino brilhava, sua performance no palco também. Desta vez, um público mais cheio pareceu ter esquecido do frio. “Aqui é o lugar que eu mais me sinto amada”, confessou em meio a um repertório com as conhecidas Pra que me chamas?, na abertura, Minha história e Miragem, com direito a um sincronizado estalar de dedos entre ela e a plateia.
Carisma de Xênia França aqueceu o Palco Pop. Foto: Jan Ribeiro/Secult-Fundarpe
Em direção ao Palco Mestre Dominguinhos, o principal do festival, foi possível prestigiar a mistura de arrocha e pagode baiano com música eletrônica da banda Àttøøxxá. O som autoral de uma nova safra de artistas independentes vem dominando o festival nos últimos anos, como é o caso da Baiana System, que se apresentou na edição passada. Um dos principais atrativos da banda é o estilo híbrido, que bebe de fontes da cultura da Bahia (presença da guitarra baiana), da África (percussão) e da Jamaica (sistemas de sound system), caminho que tem inspirado também outros grupos baianos, como é o caso do Àttøøxxá.
Neste ano, aliás, estes músicos também marcaram o discurso de ascensão do povo negro aos espaços culturais, o que antes era ecoado apenas nas periferias, bem como relembraram o lugar que ocupavam quando o sonho ainda parecia distante: “Nós vimos Nação Zumbi tocar nesse palco, hoje nós estamos tocando com os caras”. Para encerrar o show, o refrão "é som de preto,/ de favelado,/ mas quando toca ninguém fica parado” reverberou pela praça junto ao público.
“Você é preto! Você é preto! Você é preto!...”, grita o ator Wagner Moura a Lázaro Ramos, no filme Ó paí, ó (2007). A cena foi transmitida no telão atrás de Emicida, durante seu show. As luzes foram apagadas e o rapper se colocou de pé, nos encarando, provocando uma reação. A impactante letra da música Boa esperança foi a resposta.
Público de Emicida no FIG 2018. Foto: Felipe Souto Maior/Secult-Fundarpe
Assim como ela, outras faixas do seu disco Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa, inspirado numa viagem do artista ao continente africano, fizeram parte do repertório. Para encerrar, um público que se espremia na grade estirou o dedo indicador da mão e pediu por Mandume. Mas antes, entre a fala sobre o que o inspirou na escrita da letra, soltou um: “Nós gosta do nosso cabelo igual à nossa autoestima, pra cima”. Foi ovacionado.
A banda pernambucana Nação Zumbi fechou a noite, fazendo ecoar outras manifestações da matriz africana nos dias de hoje.
O FIG trouxe “um viva à liberdade” de um povo que sempre foi silenciado, reduzido a coadjuvante em uma história em que, na realidade, é protagonista. Pouco a pouco, a cultura negra se torna visível. Para completar, Emicida: “Nós quer ser dono do circo, cansamos da vida de palhaço”.SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.
*A repórter viajou a Garanhuns a convite do festival, realizado pelo Governo do Estado de Pernambuco.