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Saldos do maior festival de animação

Os filmes 'Funan' e 'La Casa Lobo', longas-metragens que receberam os dois principais prêmios da competição, sinalizam diferentes caminhos do gênero cinematográfico

TEXTO JÚLIO CAVANI, DE ANNECY*

18 de Junho de 2018

Cena de 'Funan', o grande filme vencedor da 42ª edição do evento francês

Cena de 'Funan', o grande filme vencedor da 42ª edição do evento francês

Imagem Reprodução

Por ser o mais importante do circuito de cinema de animação do mundo, o Festival de Annecy desempenha o papel de oferecer um mapeamento da produção internacional e também de apontar novas tendências. Funan (Bélgica, Camboja, França, Luxemburgo) e La Casa Lobo (Chile), os longas-metragens que receberam os dois principais prêmios da competição, sinalizam diferentes caminhos, respectivamente: de inclusão político-cultural e de busca pela experimentação poética a partir de recursos técnicos mais artesanais.

O festival está na 42ª edição, mas começou há 60 anos, pois inicialmente era bianual e depois tornou-se anual. A mostra competitiva de longas não existia no início porque ainda não havia uma produção internacional constante tão numerosa de longas. Ao longo dos anos, a quantidade de filmes lançados aumentou, embora ainda seja possível perceber certa dificuldade em reunir anualmente 10 concorrentes de nível de qualidade artística e autoral indiscutivelmente alto – a maioria dos lançamentos do mercado tem um perfil comercial e infantil.

Na verdade, até hoje, a competição de curtas-metragens de Annecy ainda é mais relevante. Na cerimônia de premiação, inclusive, os prêmios para curtas são anunciados por último, como se fossem mesmo os principais.

Curtas e longas de destaques autoral da 42ª edição:

LA CASA LOBO (Chile), de Cristóbal León e Joaquín Cociña – Prêmio do Júri



Entre os longas da competição de Annecy, La Casa Lobo pode ser considerado o mais experimental e desafiador tanto do ponto de vista técnico quanto narrativo. O filme chileno transmite as sensações do subconsciente de uma menina que está trancada em uma casa sozinha, ao lado de apenas dois porcos, que se transformam em crianças. A abertura para interpretações sobre a situação é infinita, embora alguns detalhes apontem para significados políticos, seja em relação ao crescimento da extrema direita, ao falso moralismo da Igreja Católica ou à ditadura no Chile. A ação transcorre por meio de objetos animados quadro a quadro, com uma combinação entre o mecanismo do stop motion e das pinturas animadas feitas sobre as paredes (estilo bastante popularizado pelo artista italiano Blu). Outro forte aspecto plástico é a proposital imperfeição dos personagens, objetos e cenários, o que demonstra um desprendimento em relação à perfeição técnica e, ao mesmo tempo, reforça o tom surreal da situação, pois, nos sonhos e pesadelos, as coisas podem estar deformadas ou em constante transformação.


GUAXUMA (Brasil, França), de Nara Normande



Guaxuma alcança uma simbiose entre forma e conteúdo, ao promover uma perfeita sintonia entre técnica e poética. Esse equilíbrio estético vai bem além do mero exercício cinematográfico, ao servir de base para a transmitir emoções extremamente pessoais de Nara Normande, que conta uma história autobiográfica narrada com sua própria voz. Por ser uma animação ambientada na infância da diretora, a escolha de bonecos com elementos cartunescos realça ainda mais os pontos da memória infantil. Ao escolher a areia como material principal, ela ainda incorpora algo presente naquela atmosfera, já que a maior parte do curta se passa em uma praia. A natureza, portanto, faz-se presente como cenário e também como essência palpável das composições. O filme pode até mesmo ser considerado um documentário, pois é estruturado por um depoimento que narra um acontecimento real ilustrado por uma representação direta da imaginação e das recordações da artista sobre sua família, seus antigos amigos, seu lugar de origem e, principalmente, sua melhor amiga Tayra.


FUNAN (Bélgica, Camboja, França, Luxemburgo), de Denis Do



O grande vencedor do festival é um filme esteticamente convencional que adota um estilo de desenho animado clássico, tradicional. O mérito do longa-metragem está mais presente na denúncia da repressão sofrida pelo povo cambojano durante o período do Khmer Vermelho. O diretor Denis Do, cujos pais sofreram durante o episódio histórico, conta a história com uma comovente verossimilhança emocional e provocou uma catarse na plateia de Annecy, que o aplaudiu em cena aberta, numa sequência apoteótica.


CE MAGNIFIQUE GÂTEAU! (Bélgica, França, Holanda), de Marc James Roels e Emma de Swaef



O média-metragem de 44 minutos é formado por cinco curtas que representam o comportamento colonialista dos europeus na África (também verificado em outros continentes). Com um timing que subverte as expectativas da plateia e deixa o público muitas vezes em situação desconfortável, os realizadores exploram os limites entre o humor e o constrangimento coletivo, com uma forte crítica político-social que segue contemporânea. O filme também impressiona pela perfeição técnica, a partir de uma belíssima fotografia e de bonecos que possuem a textura da pele formada por fios de tecido.


MAKE IT SOUL (França), de Jean-Charles Mbotti Malolo



O curta-metragem do franco-camaronês Jean-Charles Mbotti Malolo reconstitui um encontro entre os cantores James Brown e Solomon Burke, considerados reis do funk e da soul music. Com uma técnica de animação que simula traços de hidrocor em movimento, o filme transmite a energia explosiva da música negra norte-americana e discute algumas questões de vaidade presentes no cotidiano dos artistas.


HAYA SHAVE KOL SHEKEL (Israel), de Ilona Yudin, Paz Bernstein, Muli Asido, Erika Cumpton, Adam Magrala, Yael Solomonovich, Lara Buyom, Sarai Abergel, Guy Livnat e Noy Friman



Traduzido para o português, o título do filme significa Vale cada centavo. O curta é formado por pequenos episódios dirigidos por diferentes diretores e diretoras, com várias técnicas de animação, ao som de depoimentos em off baseados em comentários deixados na internet por usuários de serviços de prostituição e também em relatos de prostitutas sobre como elas foram tratadas por seus clientes. O filme, que talvez tenha sido o mais chocante exibido em Annecy, é uma porrada.

JÚLIO CAVANI, jornalista, crítico e realizador. Dirigiu os curtas Deixem Diana em paz (2013) e História natural (2014). Atualmente, é também curador do festival Animage, no Recife. 

*O jornalista viajou a convite do Consulado da França no Recife, do Instituto Francês do Brasil e do festival Animage.

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