Cobertura

Documenta 14, uma celebração ao estrangeiro

Obras e visitantes apontam a vocação da Alemanha e de Kassel neste momento da 'documenta 14', em que estrangeiros e imigrantes são parte importante da grande mostra

TEXTO Bárbara Buril

12 de Junho de 2017

Paisagem da cidade de Kassel, na Alemanha, durante esta 'documenta 14'

Paisagem da cidade de Kassel, na Alemanha, durante esta 'documenta 14'

Foto MAYARA MARQUES

A cidade de Kassel se vê realmente transformada durante o período da documenta. Desde a abertura oficial da 14ª edição, que aconteceu no sábado (10/6), o que se vê pelas ruas é um trânsito bem maior de pessoas, cuja diversidade cultural demonstra que vieram para cá por conta da documenta. Há também uma grande quantidade de policiais espalhados por vários pontos da cidade. No sábado, dia da abertura, até os céus estavam patrulhados por helicópteros da polícia. Isso tanto porque a documenta agrupa em pequenos espaços uma grande quantidade de pessoas, o que a torna alvo de ataques, como porque, na ocasião, Kassel recebeu o presidente da Alemanha, Frank Walter Steinmeier, e a sua contraparte grega, Prokopis Pavlopoulos. Steinmeier inaugurou a parte alemã do evento em frente ao Museu Fridericianum, antes de visitar outras exibições com Pavlopoulos.

O clima da abertura é realmente diferente. Para o estudante líbio Keil Büzedig, “aqui não parece Kassel. Não recebemos sempre muitas pessoas, então é uma novidade vermos tanta gente por aqui. Não entendo de arte, mas estou empolgado com o trânsito de pessoas falando várias línguas. Aqui só se escuta árabe e alemão e, de repente, escutamos inglês!”. Keil, que mora em Kassel há seis meses, tendo imigrado da Líbia, na África, para a Alemanha com o intuito de realizar um curso superior, refere-se, em sua fala, ao que se vê como a maior comunidade de imigrantes em Kassel: os árabes, de origens síria, turca, curda e libanesa. Por alguns lugares da cidade, é possível entrar no metrô e apenas escutar árabe. Pelas ruas, os restaurantes predominantes são as “Kebaphaus”, lanchonetes onde se vendem os famosos kebabs, e os “Shisha bars”, um mix de café e pub onde se pode beber café ou algo alcoólico, e fumar o que conhecemos como o narguilê.

Uma atmosfera que pode, inclusive, nos fazer esquecer que estamos, afinal, na Alemanha. E é claro que esses ambientes mais árabes do que alemães nos fazem lembrar tanto do universo distópico criado pelo escritor francês Michel Houllebecq em Submissão, obra na qual ele desenha uma Europa futura na qual os árabes passam a ocupar cargos públicos na França e a ditar os costumes pregados no Alcorão, como nos levam a refletir sobre os significados da imigração e suas problemáticas. A Alemanha, de fato, abriu as suas portas para os imigrantes e esse ato de generosidade política e social, apesar de louvável, também guarda as suas ambiguidades e dificuldades práticas.

Trata-se de um tema complexo que, aliás, a documenta se propõe a abordar. De todas as obras possíveis de serem encontradas dentro do Fridericianum, Neue Galerie, Kulturhauptbanhof e documenta Halle, a mais impactante dedicada a essa questão é justamente aquela que se pode encontrar ao ar livre, na Königsplatz: a obra Monumento do estrangeiro e do imigrante, do artista Olu Oguibe. No obelisco de 16 metros, está gravada, em alemão, inglês, árabe e turco, a seguinte frase, retirada da Bíblia: “Eu era um estranho e vocês me acolheram”. A obra, por ter uma forma de obelisco e por se localizar na principal praça de Kassel, soa como um monumento de celebração e posiciona-se, assim, contrariamente a todos os movimentos antimigratórios crescentes hoje em dia também no discurso de líderes políticos da Europa, sobretudo ocidental.

Monumento ao estrangeiro

O próprio autor da obra, o artista Olu Oguibe, viveu quando criança os horrores da Guerra Civil na Nigéria e cresceu na Inglaterra. No monumento artístico que instalou em Kassel, evoca a atual crise de humanidade em certos discursos políticos e reafirma os princípios atemporais e universais de cuidados sob perseguição e guerra. A obra, que ficará na Königsplatz após a documenta e será vista cotidianamente pelos moradores da cidade, parece ter um forte potencial de transformar, pelas vias da repetição visual, o temor e a antipatia à xenofobia.

BÁRBARA BURIL jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE.

* A repórter foi a Kassel através de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

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