Mas não só ele. Na conferência, o diretor de Programas Públicos da documenta, o filósofo Paul B. Preciado, cujo trabalho questiona os limites das definições binárias de gênero, foi enfático ao dizer que, se nós usarmos a opressão e a violência como formas de governo, não viveremos neste mundo por muito tempo. Preciado, que passou recentemente por um processo de transição de gênero, reforçou que não só ele está passando por um processo de transição: vive-se um momento de mudança na agenda neoliberal.
Aliás, o que parece ficar claro é que a documenta busca, através de sua 14ª edição, questionar um modus operandi atual que parece nos ter sido imposto. Logo na abertura da conferência, o curador “at large” (“a distância”) Bonaventure Soh Bejeng Ndikung nos trouxe a possibilidade de retomar a nossa humanidade desafiando uma agenda que parece tirar do sujeito a possibilidade do cuidado de si e do outro. “A desorientação aponta para o esquecimento, para o descarte do convencional. Tem a ver com perder. Mas essa desobediência abre espaço para que aquilo que é subversivo possa emergir”, apontou.
Apesar das ambiguidades do nosso tempo, a reinvenção diante de um cenário político e social que parece ter regredido é apresentada como uma possibilidade. Como defendeu Dieter Roelstraete, também curador da documenta 14, a arte parece ser vista pelos alemães como um modo de organizar uma realidade fragmentada e desorientadora: “A documenta, em si, surgiu em um pós-guerra marcado pelo fragmento. A Alemanha, de alguma maneira, parece querer solucionar problemas políticos através da arte”.
A reflexão de Roelstraete aponta que, embora muitos dos trabalhos não tenham sido produzidos em sua maioria por alemães, é evidente que a documenta é uma instituição alemã cuja epistemologia não pode ser ignorada.
No trecho do trabalho Quatrain, apresentado ainda na conferência de imprensa pelo artista e violinista sírio Ali Moraly, vê-se uma obra que parece digerir os horrores da guerra na Síria. Moraly, que pesquisava a música síria há alguns anos, teve que fugir do seu país quando a guerra desatou. Em uma das músicas, Graves in the sky (Túmulos no céu), sente-se um país cujo solo não foi suficiente para guardar os seus mortos. De algum modo, em seu discurso e escolha curatorial, a documenta parece apresentar a arte como uma possibilidade de terapia.
O evento, que acontece a cada cinco anos, vai até o dia 17 de setembro em Kassel.
BÁRBARA BURIL jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE.
* A repórter foi a Kassel através de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).