Ainda não há previsão para a estreia de Eduardo Galeano Vagamundo, que, segundo Felipe Nepomuceno, deve "rodar o circuito de festivais" neste segundo semestre para depois chegar à grade de programação do Canal Brasil.
CONTINENTE Nos créditos de Eduardo Galeano Vagamundo, tem a informação de que a entrevista foi feita pelo seu pai, Eric Nepomuceno. As imagens já eram familiares para você ou chegou depois da morte de Galeano?
FELIPE NEPOMUCENO A gente faz uma série para o Canal Brasil chamada Sangue latino, que começou em 2010. A primeira temporada foi filmada em 2009 e a entrevista inicial foi com o Galeano. Nasceu junto com a série a vontade pela presença dele. Em outubro de 2009, uma equipe saiu do Rio de Janeiro para Argentina e o Uruguai e lá, na casa dele em Montevidéu, fizemos o Galeano. De lá pra cá, o Sangue latino já está na oitava temporada. Essas imagens do filme são uma coletânea do que foi filmado ao longo do tempo todo.
CONTINENTE Vocês foram aproveitando a presença dos escritores?
FELIPE NEPOMUCENO Mais ou menos. Quando fomos para Portugal com o Sangue latino, gravamos o Mia Couto, e eu pedi para ele ler o trecho do Galeano, que já havia morrido. Mia Couto é uma exceção. Todos os outros foram filmados em 2016 e 2017, já para o filme, inclusive a Lila, a garota que aparece, que é neta do Galeano. Filmamos na casa dele, era a primeira vez em que voltávamos à casa dele e da Helena depois da morte, então tinha uma sensação especial de estar lá.
CONTINENTE Quanto tempo tinha a entrevista original?
FELIPE NEPOMUCENO Cinquenta minutos. No programa, tinham entrado mais ou menos 15 minutos. Deixamos aproximadamente 35 minutos de material inédito e não foi todo utilizado do filme. Fiz uma seleção, mas isso é uma consequência do modo de trabalho do Galeano. Ele era muito rigoroso e severo no que diz respeito ao trabalho. E sim, era amigo dos meus pais de muitos anos. Eu, na verdade, conhecia o Galeano desde quando ainda estava na barriga da minha mãe. Ou seja, a conversa ali poderia durar 20 horas, até mais, seria uma conversa da vida toda ali, mas ele manteve um tempo que costumava dar para as entrevistas. Demorei a entender isso.
CONTINENTE Como se não tivesse te dado acesso especial porque era filho dos amigos dele?
FELIPE NEPOMUCENO A entrevista era para mim, mas era para meu pai também, e claro que era na casa dele e tínhamos passado o dia inteiro juntos. Mas, quando foi ligada a câmera, ele manteve o tempo de entrevista que costumava dar. Hoje, existem inúmeras entrevistas deles, felizmente disponíveis na internet, em que dá para notar, eu acho, uma intimidade dele com quem está falando.
CONTINENTE O preto e branco surgiu no início ou já na edição?
FELIPE NEPOMUCENO Surge com o Sangue latino, na verdade. Antes, não tinha nenhum programa em preto e branco na televisão. No Canal Brasil, também não havia. A origem se deve a um dos cineastas que mais me influenciou, o Fernando Faro, que dirigia o programa Ensaio, na TV Cultura. O Ensaio começou como preto e branco e depois passou para cor. De certa forma, isso contribuiu para que também quiséssemos fazer Sangue latino em p&b. Então, o material do filme já vinha junto com essa estética da série.
CONTINENTE Queria que você falasse do recorte do documentário, que termina abrindo uma janela para o pensamento de um dos mais prolíficos escritores da América do Sul, alguém que começa se descrevendo como um “exímio ouvidor de histórias” e que depois virou um exímio contador de histórias. Foi uma opção sua de não trazer muito as reflexões políticas dele, de não destacar o pensamento político sobre o continente?
FELIPE NEPOMUCENO Nunca falei de política com o Galeano. Nunca conversei sobre isso. Falamos, sempre, sobre assuntos nossos, sobre coisas pessoais, da minha vida, a vida dele e, claro, muito sobre futebol. Ele adorava futebol, torcia para o Nacional. Então, já existia isso de eu não ter tido uma conversa específica sobre política, apesar de que, depois, no material da entrevista havia uma parte em que ele falava sobre esse assunto. Acontece que eu acredito que o Galeano, para o bem e para o mal, atraía e afastava pessoas da literatura dele com seu posicionamento político. E acho que a literatura dele é tão maravilhosa que muitas pessoas não chegam a ela por conta das posições que ele defendeu.
CONTINENTE Como se as pessoas não fossem além de As veias abertas da América Latina?
FELIPE NEPOMUCENO Isso, as pessoas têm o Galeano como uma pessoa de esquerda, que sempre se posicionou. Então, acho que o documentário também foi uma tentativa de aproximar mais leitores, um número maior de pessoas e espectadores, da essência dele. Não penso que isso ficou datado porque eu acho que na América Latina, no Brasil e no mundo todo, na verdade, as coisas não mudaram. Estamos vendo ciclos se repetindo, então o pensamento dele é muito atual, mesmo para questões pontuais. Nunca pensaria nele como um pensador datado, e sim como mais atual do que nunca, principalmente no Brasil de hoje. Ele é ainda mais necessário, tanto na literatura como no pensamento, pois era muito aberto ao diálogo, a ouvir o outro. Isso é muito necessário.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.
* A repórter viajou a convite da organização do festival.