O 70º Festival de Berlim veio com muitas mudanças em 2020. Primeiro, a data teve de ser adiada porque o Oscar aconteceu no início de fevereiro, empurrando a Berlinale para o dia 20. O festival também está sob nova direção, de Carlo Chatrian (que vem do Festival de Locarno) e Mariette Rissenbeek, substituindo Dieter Kosslick, que reinou por 18 anos. Apesar disso, a seleção não pareceu tão diferente assim, a não ser pelo número menor de estrelas – o que talvez seja só uma coincidência. Berlim continua forte nas temáticas políticas e sociais. E claro que só vai dar para enxergar mesmo essas mudanças nos próximos anos, quando a personalidade do diretor artístico Carlo Chatrian ficar mais evidente.
O vencedor do Urso de Ouro, o iraniano There is no evil, de Mohammad Rasoulof, é uma obra claramente política, até porque seu diretor está condenado a um ano de prisão, banido de fazer cinema e proibido de sair do país. O filme mostra a importância das escolhas, principalmente num Estado autoritário como o Irã. Em quatro histórias que se relacionam, homens se confrontam com uma decisão: participar ou não da execução de presos, muitos deles políticos. A recusa envolve consequências, mas é possível – dizer é que nem sempre é possível, afirma o filme, um típico melodrama iraniano com cenas lindas e humanas, e a coragem de provocar o autoritarismo. Na coletiva de imprensa do filme, os produtores foram acusados, por jornalistas iranianos, de falsear a história, sob a justificativa de não haver execuções no país.
DAU. Natasha, dos russos Ilya Khrzhanovskiy e Jekaterina Oertel, é também um tapa na cara do autoritarismo, só que desta vez de Vladimir Putin, relacionando a Rússia de hoje com o totalitarismo da União Soviética. Seus métodos e resultados são bastante diferentes dos utilizados por Rasoulof. Para realizar a obra, os diretores construíram um instituto de ciências de 12 mil metros quadrados na Ucrânia, colocaram cientistas e outros funcionários trabalhando lá dentro e filmaram o que viram. DAU. Natasha, que levou do festival o prêmio de contribuição artística pela fotografia, é o primeiro de uma série de filmes – o segundo, DAU. Degeneration, passou em sessão especial em Berlim.
No total, foram milhares de atores não profissionais e extras, colocados numa espécie de laboratório que busca replicar a sociedade soviética entre 1938 e 1968. A personagem do título de DAU. Natasha, interpretada por Natasha Berezhnaya, é garçonete do refeitório do instituto de ciências. Só nas entrelinhas se vê o peso do regime opressor, que mostra suas caras no final, com uma cena de tortura explícita. O diretor e os produtores foram acusados de assédio moral, o que Khrzhanovskiy rebateu como um método soviético de intimidação. Mas é inegável que o filme quer chocar, submetendo seus personagens (e atores) a situações, no mínimo, duvidosas. DAU. Natasha também está proibido na Rússia, por ter sido considerado propaganda pornográfica (há uma cena de sexo explícito).
DAU. Natasha também está proibido na Rússia. Foto: Divulgação
Em Irradiated, o cambojano Rithy Panh expõe a capacidade que o ser humano tem para a crueldade. Sobrevivente do genocídio perpetrado pelo Khmer Vermelho em seu país, ele cola imagens dos campos de concentração nazistas, dos atingidos pelas bombas atômicas no Japão e pelo napalm no Vietnã, e dos horrores no Camboja, onde as estimativas apontam para o assassinato de 1,6 a 1,8 milhão de pessoas, algo em torno de 20% da população. A sequência de imagens lembra que eventos como esses sempre podem acontecer de novo, que o mal está a nos rondar e que precisamos continuamente ser lembrados dele, mas muitas dessas cenas são tão difíceis de ver, que correm o risco de dessensibilizar o espectador.
O drama dos refugiados e dos imigrantes foi outro dos temas inseridos na programação da Berlinale. Berlin Alexanderplatz, do alemão de origem afegã Burhan Qurbani, atualiza o clássico romance de Alfred Döblin, adaptado por Rainer Werner Fassbinder, em 1980. O protagonista Franz agora é um refugiado de Guiné Bissau (interpretado por Welket Bungué, de Joaquim, dirigido por Marcelo Gomes), que chega a Berlim com sonhos grandes e se vê numa realidade de submundo. O melodrama se perde em atuações exageradas, das quais apenas Bungué se salva. A minissérie Stateless, produzida por Cate Blanchett, também lida com o assunto, oferecendo várias perspectivas para a crise na Austrália, onde o governo fechou as portas para os refugiados. Leo (Javier Bardem), protagonista do fraco The roads not taken, de Sally Porter, também é um imigrante mexicano, mas, tirando uma cena aqui e outra ali em que sofre preconceito, esse não é o tema do filme, que lida com sua doença neurológica e a dificuldade da filha Molly (Elle Fanning) de cuidar do pai.
O belo Pinocchio transforma o pequeno boneco de madeira numa espécie de imigrante, que não é bem-recebido em nenhum lugar – na versão de Matteo Garrone, Pinóquio sofre menos por ser desobediente e mais porque o mundo é simplesmente cruel, especialmente com quem é diferente. Coincidentemente, outro italiano, Hidden away, de Giorgio Diritti, conta a história do artista Antonio Ligabue, que foi marginalizado pela pobreza e pela doença mental. O filme é fraco, mas conta com uma atuação impressionante de Elio Germano, que levou o Urso de Prata por seu trabalho.
Cena de Berlin Alexanderplatz, do alemão de origem afegã Burhan Qurbani. Foto: Divulgação
É uma pena que um filme bonito como Days, de Tsai Ming-liang, tenha saído sem prêmios do Festival de Berlim. Com apenas dois personagens, Kang (Lee Kang-Sheng) e Non (Anong Houngheuangsy), sem diálogos, com cenas longas, mostra a solidão dos dois homens, um doente, vivendo numa casa moderna e distante; o outro, pobre, morando num pequeno apartamento. Seu encontro é um momento fugaz em que dividem a solidão e sua humanidade. Por mais melancólico que seja seu filme, Ming-liang mostrou que, apesar da guerra, da doença, do preconceito, existe beleza no contato humano.
MARIANE MORISAWA é jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.