Com 19 filmes entre coproduções, curtas e longas, o Brasil transformou a Berlinale em "Brasinale". Só na seção Panorama foram quatro: o documentário Nardjes A., no qual o diretor Karim Aïnouz capta com celular o entusiasmo do movimento por democracia na Argélia, país do seu pai; os dois primeiros longas de ficção de Matias Mariani (Cidade pássaro) e Daniel Nolasco (Vento seco); e o o longa de estreia de Fernando Segtowick, o documentário O reflexo do lago. Juntos, eles formam uma boa amostra da vitalidade e variedade do cinema brasileiro – além de fôlego para o futuro, se a política de audiovisual existir.
Matias Mariani (diretor do documentário A vida privada dos hipopótamos) revela uma São Paulo pouco conhecida em Cidade pássaro. O músico Amadi (O.C. Ukeje) viaja da Nigéria para a capital paulista, a fim de procurar o irmão Ikenna (Chukwudi Iwuji). Ao chegar, descobre que Ikenna não é professor de uma universidade, como tinha dito. Amadi perambula pela cidade seguindo pistas de Ikenna, que estava trabalhando numa equação matemática para as coincidências. Coisa de gênio ou de louco? Ao ir em busca de seu irmão mais velho, com quem tinha uma rivalidade fraternal, Amadi se perde e se encontra. O filme, mesmo realista, tem uma pegada de ficção científica na forma como foi rodado. E mostra como a autoproclamada cidade dos imigrantes recebe seus novos moradores, vindos não da Europa, do Japão e do Líbano, como outrora, mas do continente africano e da América do Sul. A vida dos recém-chegados não é nada fácil, os sonhos não se cumprem, e eles acabam engolidos pela metrópole.
Lente de Matias Mariani foca na vida de nigerianos na maior cidade brasileira. Foto: Divulgação
Em Vento seco, Daniel Nolasco também mostra uma faceta pouco conhecida do Brasil. Ele voltou ao lugar onde nasceu e passou boa parte da vida, Catalão, em Goiás, com cerca de 100 mil habitantes e uma economia baseada no agronegócio, para bagunçar um pouco as percepções sobre a vivência LGBTQ numa cidade no interior do Brasil. Sandro (Leandro Faria Lelo) trabalha numa fábrica de fertilizantes e mantém um relacionamento sexual (e discreto) com Ricardo (Allan Jacinto Santana), seu colega de empresa. Quando Maicon (Rafael Theophilo) chega, saído direto de uma ilustração de Tom of Finland, e flerta com Ricardo, Sandro fica balançado. O diretor compõe um contraste interessante entre a aridez da vida de Sandro e suas fantasias sexuais em puro neon e fetichismo, em sequências que prestam homenagem ao trabalho de Al Parker e Wakefield Poole, e não tem medo de mostrar o sexo entre homens, com várias cenas explícitas.
Fernando Segtowick se inspirou no livro O lago do esquecimento, de Paula Sampaio, e dá uma visão local da vida na Amazônia no documentário O reflexo do lago. O filme aborda a população ribeirinha do enorme lago formado pela Hidrelétrica do Tucuruí, construída nos anos 1980, durante o governo militar. Num daqueles contrastes típicos no Brasil, os habitantes que moram nas ilhas dali não têm energia elétrica. O cineasta aposta nas imagens em preto e branco e nos tempos largos para mostrar o impacto da hidrelétrica na floresta e nas pessoas, sem martelar mensagens preservacionistas, mas deixando claro que a exploração da região precisa ser revista.
Vento seco trata de relações entre homens numa cidade do interior de Goiás. Foto: Divulgação
Veterano desta turma, Karim Aïnouz (diretor de A vida invisível) fez seu oitavo longa durante uma viagem para a Argélia, país de nascimento de seu pai, com o intuito de pesquisar outro projeto. Topou com os enormes e empolgantes protestos pela democracia e, principalmente, encontrou Nardjes A., a ativista do título. O diretor acompanha um dia na vida da jovem, que divide com o público os sonhos e desassossegos de sua geração, as estratégias de protesto, sempre alegres e cheias de música, apesar da repressão muitas vezes dura, e o apoio dos amigos e da família. São imagens vibrantes – e todas captadas com um celular, provando, novamente, que mais importante do que o equipamento é o olhar.
Diretor de Avida invisível traz aqui uma abordagem documental de uma militante pela democracia na Argélia. Foto: Divulgação
O documentário O reflexo do lago faz uma imersão na vida dos povos ribeirinhos da Amazônia, a partir da instalação de uma hidroelétrica. Foto: Divulgação
MARIANE MORISAWA é jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.