Talvez um caminho para comparar os dois filmes seja justamente a origem em fatos verídicos e o que se fez dela ao construir a estrutura ficcional. À vontade no propósito de narrar a explosão misógina de um homem perverso, Fatih Akin capricha no que quer mostrar: sangue, sexo, violência, ultrarrealismo. Mas derrapa, assumindo-se quase como um voyeur diante de tanto sangue, permitindo que seu olhar se confunda com o de um homem que destinava às mulheres o ódio da vida ou a raiva que tinha de si e da sua aparência.
Já François Ozon delineia um contorno de mais sobriedade na condução de Grâce à Dieu, atendo-se à força das palavras e ao que nem sempre é possível mostrar. Sua trama se ancora nas histórias de Alexandre (Melvil Poupaud, seu protagonista em O tempo que resta, de 2005), François (Denis Ménochet, de Custódia) e Emmanuel (Swann Arlaud), vítimas de abuso sexual cometido por um padre com quem haviam tido aulas de catecismo na infância.
Grâce à Dieu, que pode ser traduzido em português para “graças a Deus”, nasceu meio por acaso, como relatou o diretor: “Eu sempre fiz filmes com protagonistas mulheres, personagens femininas fortes e interessantes, e quis fazer uma obra em que os personagens principais fossem homens que expressassem seus sentimentos e emoções. No cinena, muitas vezes o reino da emoção é feminino e eu queria personagens que se emocionassem e sofressem , que não tivesse apenas a agressividade para eles. Um dia, navegando na internet, achei o site da associação e comecei a ler os relatos daqueles homens. Fiquei muito tocado”.
Silêncio da Igreja Católica é constestado na trama de Ozon. FOTO: Divulgação
A partir dessa visita ao site da La Parole Libertée (“a palavra libertada”), a ação transcorre entre 2014 e 2016 e de um modo inédito na trajetória de Ozon, um cineasta cujo encanto principal, seu maior trunfo de sedução, talvez decorra da maestria com que salta de um gênero para outro – O amante duplo (2017) é um diametralmente oposto a Swimming pool (2003) e a Uma nova amiga (2014). Aqui, ele divide o filme como um tríptico, com cada personagem assumindo as rédeas de determinado momento da narrativa. “Foi a primeira vez em que isso aconteceu, assim como foi a primeira vez que escrevi um filme baseado em fatos reais. Não digo que é uma nova fase na minha carreira , mas foi certamente um novo approach”, comentou.
Muitos jornalistas de países que também assistiram a escândalos semelhantes relacionados à Igreja Católica questionaram o diretor sobre a repercussão em Lyon, cidade onde o cardeal Barbarin (interpretado por François Marthoret) foi considerado, em janeiro passado, culpado de acobertar os crimes perpetrados por seus subordinados na hierarquia eclesiástica. “Filmamos apenas os exteriores em Lyon, os interiores foram filmados na Bélgica porque, bem, Lyon é uma cidade com uma comunidade católica extremamente aguerrida, digamos assim”, atentou Ozon. “Mas o que está no filme é de conhecimento de toda a França, saiu em todos os jornais e revistas, todo mundo sabe”.
O diretor na entrevista coletiva na Berlinale. FOTO: 69a Berlinale
Indagado pela Continente sobre o uso de flashbacks, que aparecem em um tom cromático acima da paleta de cores da fotografia, François Ozon respondeu que queria que a audiência sentisse “o horror”: “Quando estava escrevendo o roteiro, fiquei me questionando sobre isso, mas decidi que tinha que ser um filme escrito, em que as palavras fossem importantes, então essas sequências do passado precisavam mostrar o contexto, as circunstâncias, aquela situação em que as crianças se encontravam com alguém poderoso, mas sem sentir perigo algum. Não mostro o horror do que aconteceu. Cabe ao espectador construir”.
Der goldener Handschuch e Grâce à Dieu ainda não têm distribuição assegurada no Brasil. Os últimos filmes de Fatih Akin e François Ozon exibidos no país – Em pedaços e O amante duplo, os dois de 2017 – foram lançados pela Imovision e Califórnia Filmes, respectivamente.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.
* A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA.