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Ozon já desponta na Berlinale

'Grâce à Dieu', do cineasta francês, revisita história de abuso sexual na França e a luta por punição ao padre católico; novo de Fatih Akin resgata um serial killer na decadente Hamburgo

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

08 de Fevereiro de 2019

'Grace à Dieu' entra em cartaz já na próxima semana na França

'Grace à Dieu' entra em cartaz já na próxima semana na França

Foto Jean-Claude Moireau/Divulgação

Terceiro dia de competição e um favorito já desponta na 69ª Berlinale: Grâce à Dieu, o novo longa-metragem de François Ozon. Poucos minutos antes da sessão para a imprensa, na manhã da sexta-feira (8), no Berlinale Palast, um grupo de jornalistas conversava em inglês nos corredores do hotel que faz as vezes de centro de imprensa para os cerca de 5 mil profissionais credenciados. “Vamos correr para não perder a hora”, apressavam-se, “pois esse é o maior filme do festival”. Uma certeza tão sólida quando ainda falta uma semana para a premiação do Festival Internacional de Cinema de Berlim poderia ser encarada como devaneio ou fantasia, mas o fato é que a exibição causou furor. E o filme corresponde.

Comparemos com a repercussão de Der goldener Handschuch, o novo de Fatih Akin, cujas sessões para a imprensa ocorreram na noite da sexta e na tarde deste sábado (9). Ozon e Akin são cineastas que a Berlinale adora: o realizador francês esteve no festival várias vezes e o elenco de 8 mulheres levou o Urso de Prata de interpretação feminina em 2002, e o alemão de origem turca ganhou o Urso de Ouro em 2004 por Contra a parede. São autores no sentido estrito, apreciados por crítica e público, e suas obras são aguardadas e disputadas por festivais e, aqui na capital alemã, por fãs que fazem fila para obter ingressos.

Na sessão em que a Continente assistiu a Der goldener Handschuch , não houve aplausos ao final, e sim alívio. Pois o enredo, no qual Fatih Akin se inspirou na história real do serial killer Fritz Honka, é manejado com extrema brutalidade pelo diretor, que nasceu na mesma Hamburgo onde Honka (na tela vivido por Jonas Dassler) assassinou várias prostitutas entre 1970 e 1975. Acontece que Honka não apenas matava as mulheres com requintes de crueldade – espancado-as e asfixiando-as – mas desmembrava seus cadáveres e, o que não conseguia jogar fora, deixava apodrecer por trás da parede de sua casa, no sótão de um prédio residencial.

O filme é fidedigno na recriação não apenas dos crimes mas a decadência da zona red light de Hamburgo, povoada por homens e mulheres envelhecidos que personificam a geração desencantada do pós-II Guerra. Na coletiva, ocorrida na tarde deste sábado, Fatih Akin argumentava que não teria sentido falar de Honka sem mostrar o ambiente em que ele havia sido forjado: "Ele é um homem daquela época em que as perspectivas pareciam todas se diluir na quantidade de álcool".
Cena do novo longa-metragem de Fatih Akin FOTO: Divulgação

Talvez um caminho para comparar os dois filmes seja justamente a origem em fatos verídicos e o que se fez dela ao construir a estrutura ficcional. À vontade no propósito de narrar a explosão misógina de um homem perverso, Fatih Akin capricha no que quer mostrar: sangue, sexo, violência, ultrarrealismo. Mas derrapa, assumindo-se quase como um voyeur diante de tanto sangue, permitindo que seu olhar se confunda com o de um homem que destinava às mulheres o ódio da vida ou a raiva que tinha de si e da sua aparência. 

Já François Ozon delineia um contorno de mais sobriedade na condução de Grâce à Dieu, atendo-se à força das palavras e ao que nem sempre é possível mostrar. Sua trama se ancora nas histórias de Alexandre (Melvil Poupaud, seu protagonista em O tempo que resta, de 2005), François (Denis Ménochet, de Custódia) e Emmanuel (Swann Arlaud), vítimas de abuso sexual cometido por um padre com quem haviam tido aulas de catecismo na infância.

Grâce à Dieu, que pode ser traduzido em português para “graças a Deus”, nasceu meio por acaso, como relatou o diretor: “Eu sempre fiz filmes com protagonistas mulheres, personagens femininas fortes e interessantes, e quis fazer uma obra em que os personagens principais fossem homens que expressassem seus sentimentos e emoções. No cinena, muitas vezes o reino da emoção é feminino e eu queria personagens que se emocionassem e sofressem , que não tivesse apenas a agressividade para eles. Um dia, navegando na internet, achei o site da associação e comecei a ler os relatos daqueles homens. Fiquei muito tocado”.
Silêncio da Igreja Católica é constestado na trama de Ozon. FOTO: Divulgação

A partir dessa visita ao site da La Parole Libertée (“a palavra libertada”), a ação transcorre entre 2014 e 2016 e de um modo inédito na trajetória de Ozon, um cineasta cujo encanto principal, seu maior trunfo de sedução, talvez decorra da maestria com que salta de um gênero para outro – O amante duplo (2017) é um diametralmente oposto a Swimming pool (2003) e a Uma nova amiga (2014). Aqui, ele divide o filme como um tríptico, com cada personagem assumindo as rédeas de determinado momento da narrativa. “Foi a primeira vez em que isso aconteceu, assim como foi a primeira vez que escrevi um filme baseado em fatos reais. Não digo que é uma nova fase na minha carreira , mas foi certamente um novo approach”, comentou.

Muitos jornalistas de países que também assistiram a escândalos semelhantes relacionados à Igreja Católica questionaram o diretor sobre a repercussão em Lyon, cidade onde o cardeal Barbarin (interpretado por François Marthoret) foi considerado, em janeiro passado, culpado de acobertar os crimes perpetrados por seus subordinados na hierarquia eclesiástica. “Filmamos apenas os exteriores em Lyon, os interiores foram filmados na Bélgica porque, bem, Lyon é uma cidade com uma comunidade católica extremamente aguerrida, digamos assim”, atentou Ozon. “Mas o que está no filme é de conhecimento de toda a França, saiu em todos os jornais e revistas, todo mundo sabe”.
O diretor na entrevista coletiva na Berlinale. FOTO: 69a Berlinale 

Indagado pela Continente sobre o uso de flashbacks, que aparecem em um tom cromático acima da paleta de cores da fotografia, François Ozon respondeu que queria que a audiência sentisse “o horror”: “Quando estava escrevendo o roteiro, fiquei me questionando sobre isso, mas decidi que tinha que ser um filme escrito, em que as palavras fossem importantes, então essas sequências do passado precisavam mostrar o contexto, as circunstâncias, aquela situação em que as crianças se encontravam com alguém poderoso, mas sem sentir perigo algum. Não mostro o horror do que aconteceu. Cabe ao espectador construir”.

Der goldener Handschuch e Grâce à Dieu ainda não têm distribuição assegurada no Brasil. Os últimos filmes de Fatih Akin e François Ozon exibidos no país – Em pedaços e O amante duplo, os dois de 2017 – foram lançados pela Imovision e Califórnia Filmes, respectivamente.

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.

* A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA.

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