Cobertura

O Brasil refletido na Berlinale

Três filmes nacionais exibidos no primeiro fim de semana da 69ª Berlinale ajudam a descortinar, para o público estrangeiro, o país em que vivemos hoje

TEXTO Luciana Veras

11 de Fevereiro de 2019

'Querência' observa o cotidiano de um tratador de gado que tem sonhos de se firmar como locutor de rodeios

'Querência' observa o cotidiano de um tratador de gado que tem sonhos de se firmar como locutor de rodeios

São aproximadamente cinco mil jornalistas na 69ª Berlinale e são 16 títulos concorrendo ao Urso de Ouro na competição, outros 40 filmes na Panorama e outras dezenas de obras em mostras como Generation ou Forum, então é natural e esperado, até, que cada cobertura traga um recorte específico. Que cada conjunto de textos ofereça um enquadramento para (tentar) apreender a seleção deste ano no espírito do tempo de cada país que enviou seus profissionais para cá. Mais uma vez, a seleção de filmes brasileiros que aporta na capital alemã atua como oráculo e espelho, lupa e termômetro para os estranhos dias que estamos a vivenciar.

No fim de semana, acompanhamos três das produções nacionais a circular pelo Festival Internacional de Cinema de Berlim. Sessões cheias para os dois filmes de Pernambuco, Divino amor, de Gabriel Mascaro, e Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes, e para Querência, do realizador mineiro Helvécio Marins Jr. Por “cheias” é bom entender não apenas lotadas, com disputa por ingressos (caso da primeira exibição de Divino amor, no CineStar, na noite de domingo, 10, que esgotou as entradas e teve gente acompanhando a projeção de pé), mas repleta de espectadores e espectadoras interessadas em saber mais.

É no pós dessas sessões que acontece o que há de mais genuíno que o cinema pode ofertar além do próprio e misterioso espetáculo da fruição artística: a troca entre autores e audiência. Divino amor segurou centenas de pessoas durante quase 40 minutos. O universo criado por Mascaro é hipnótico, quase um transe, como aqueles que Joana (Dira Paes) e Danilo (Júlio Machado) protagonizam nas sequências em que acompanham outros casais na leitura de versículos da Bíblia no grupo que dá nome ao filme. O diretor está bem acompanhado na tarefa de compor uma urdidura visual e dramática para falar do Brasil de 2027 onde o Carnaval, essa mesma epifania ansiada pelos moradores de Toritama no documentário de Marcelo Gomes, foi substituído pela Festa do Amor Supremo.

Com o mesmo fotógrafo – o uruguaio Diego Garcia – de Boi neon (2015), o diretor erige uma “fábula, uma alegoria” para falar de uma realidade não tão distante do que se vê hoje no Brasil. Em Divino amor, o país é evangélico. “Quis me apropriar dos elementos da cultural pop para ressignificar o imaginário da religião. O filme fala do controle biopolítico que o Estado exerce nos corpos e da relação intrínseca entre Estado e Igreja. Mas eu queria falar disso através de uma personagem que pudesse mostrar a fé com erotismo”, comentou na Q&A, sessão de perguntas e respostas que tradicionalmente ocorre após as projeções da Panorama.

Ele criou Joana, uma escrivã de cartório que deseja engravidar. Para tanto, ela usa “práticas liberais para consolidar um projeto conservador”. Joana, nas palavras de Mascaro, quer “ainda mais religião”. Dira Paes comentava que se tratava de um “futuro não tão distante” e dizia: “Pessoalmente, acredito em milagres, mas não em colocar minha vida nas mãos de alguém que não conheço. Acho que no Brasil de hoje as pessoas estão usando a religião para justificar tudo”.

Da mesma maneira que um grupo de jovens alemãs perguntava a uma amiga brasileira se era verdade que no Brasil governado por Jair Bolsonaro havia um drive-thru de pastor (uma das melhores ideias de Divino amor, com o pastor sendo interpretado com precisão por Emílio de Mello), na sessão de Estou me guardando para quando o Carnaval chegar que a Continente acompanhou, as pessoas ficavam encantadas com o jeito com que os moradores da cidade agrestina, capital nacional do jeans, se expressavam. E buscavam entender o que era, afinal, essa força motriz do Carnaval para levar todas as pessoas capturadas no documentário a querer vender tudo para tirar a única semana de folga no ano.

“Under Bolsonaro presidency you guys don’t have vacations anymore?”, indagou um jornalista grego na saída da sessão. “Na presidência de Bolsonaro, vocês não tiram mais férias?”. A pergunta não foi ouvida pelo diretor, que após a exibição teve o zelo de contextualizar o filme descrito por Paz Lázaro, a “section head”, ou seja, a curadora-chefe da Panorama, com um trabalho “atemporal”. “Toritama antes vivia de cabras e gado, mas um dia deixaram de produzir sandálias de couro, que saíram de modo, e aproveitaram o maquinário e as agulhas grossas para costurar jeans, mostrando a capacidade de se reciclar”, situava Marcelo Gomes.

Não é difícil para os europeus pensarem em gente que acorda e dorme para trabalhar porque, afinal, essa é a realidade neoliberal enfrentada no Velho Mundo. Essa é a uma das chaves para entender a acolhida que esse documentário tão agrestino, tão pernambucano e tão nordestino vem tendo no festival. O Brasil, que no ano passado trouxe os documentários O processo, de Maria Augusta Ramos, Bixa travesty, de Cláudia Priscilla e Kiko Goifmann, e Ex-pajé, de Luiz Bolognesi, e naqueles filmes evidenciava suas visíveis falhas estruturais, agora volta com uma obra em que o lazer é o trabalho. “Infelizmente, no nosso país educação ainda não é para muitos”, disse o diretor. “Com a Panorama comemorando a sua 40ª edição, estamos felizes de estar numa mostra muito importante da Berlinale pelo espaço que para novas linguagens e, geralmente, com conteúdo político e humanitário”, observava o produtor João Vieira Jr., da Carnaval Filmes.

Querência não está na Panorama, e sim no Forum, mas traz, à sua maneira, o mesmo tom “político e humanitário” a que o produtor pernambucano se refere. Helvécio Marins Jr. joga fora as cartilhas que sacramentam a distância regulamentar entre ficção e documentário e filma amigos seus que moram numa fazenda em Unaí, no sertão de Minas Gerais, as searas que João Guimarães Rosa retratou em Grande sertão: veredas (1956). No enredo, roubo de gado, rodeios, o tempo dilatado de quem vive em uma região onde não pega internet. A palavra “querência”, Helvécio nos diz depois, “é uma gíria do rodeio para aquela área que nem as coxias no teatro, que é onde os peões ficam se preparando”. É, também, “o seu lugar, aquele que te pertence”.

No momento em que o Brasil parece um outro país para milhares de seus habitantes – ou a pátria conservadora de Divino amor, ficção perigosamente próxima da realidade, ou o país do “trabalho acima de tudo” que os moradores de Toritama evocam – e mais e mais moradores do interior migram para inflar as periferias de grandes cidades, Querência aposta numa narrativa em que as pessoas na tela interpretam a versões de si mesmas e, no jogo entre ficção e documental, evocam a sensação de pertencer, de se sentir bem no lugar a que pertencem. No filme de Helvécio, esse lugar é o interior, o sertão, áreas onde moram pessoas alijadas do processo da “meritocracia” festejado o tempo inteiro pelo atual governo do Brasil.

Ao olhar generoso de Querência, soma-se a postura explícita do seu diretor, que foi para a primeira exibição com uma camisa em que estava escrito “Lula Livre”. “O que está acontecendo no Brasil é catastrófico. Lula foi o melhor e maior presidente que o país já teve e está preso sem ninguém consiga entender”, resumiu no microfone. Foi aplaudido, com gritos de “Freie Lula”, a versão em alemã para a expressão. Depois, à Continente, comentava que as pessoas retratadas no seu filme tinham “o maior amor do mundo” pelo ex-presidente que está preso desde abril de 2018. “Como não teriam, não é?”, indagava Helvécio Marins Jr.

Na Berlinale, o Brasil mostra a sua cara.

LUCIANA VERAS
 é repórter especial e crítica da Continente.

* A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA.

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