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“Essa não era a palavra de Jesus”

Em entrevista à Continente, o diretor do filme 'Ex Pajé', Luiz Bolognesi, fala sobre a história de Perpera Suruí, xamã dos Pater Suruí "destituído" da função depois da chegada de evangélicos

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

20 de Fevereiro de 2018

O diretor do filme 'Ex-Pajé', Luiz Bolognesi

O diretor do filme 'Ex-Pajé', Luiz Bolognesi

Foto Lais Bodanzky/Divulgação

A Panorama é uma das seções mais cultuadas da Berlinale. Como a Un Certain Regard no Festival de Cannes, é percebida não como uma competição “paralela” à seleção oficial, com as “rebarbas” que não conseguiram se cacifar à corrida pelo Urso de Ouro, mas sim como uma mostra com força, vigor, conteúdo. Esta 68a edição do festival traz 47 filmes de mais de 40 países, com uma presença marcante de produções latino-americanas. A facção brasileira está pujante com três documentários: Bixa travesty, de Kiko Goifman e Claudia Priscilla, O processo, de Maria Augusta Ramos, e Ex Pajé, de Luiz Bolognesi.

Acompanhamos uma das projeções de Ex Pajé numa das salas do CineStar, complexo que, durante a Berlinale, se divide para abrigar as sessões do Panorama e outras voltadas exclusivamente para o mercado (com as respectivas danças das credenciais). Ex Pajé é Perpera Suruí, literalmente ex-xamã dos Paiter Suruí, etnia que vive na região fronteiriça entre o estado de Rondônia e o Peru. Com a chegada de igrejas evangélicas, e a difusão de que um xamã não tem parte com o divino, os indígenas rechaçaram essa figura elementar em suas culturas e Perpera, então, virou o personagem-título.



Ex Pajé escancara um conflito em evidência no Brasil de 2018 – o achatamento da cultura dos povos originários por uma nova catequese, digamos assim, das igrejas evangélicas. “Eu estava fazendo uma pesquisa sobre pajés para fazer outro filme quando fui na aldeia deles para conhecer os pajés. Lá, dei de cara com esse personagem vivendo esse conflito e mudei completamente o foco do filme”, contou à Continente o diretor, que logo após a sessão ocorrida na noite de domingo (18/2), leu um trecho de um manifesto assinado por diversas lideranças indígenas em defesa da preservação dos ritos indígenas.

Kabena Cinta Larga e Ubiratan Suruí, mãe e filho, vieram a Berlim como representantes dos Paiter Suruí. Na tela, eles aparecem em sua rotina, falando em tupi mondé e lutando para afastar os grileiros e contrabandistas de madeira das suas terras. Na capital alemã, ratificaram a mensagem do filme. “Quando os brancos fizeram contato, em 1969, trouxeram problemas e mudanças. Hoje, estamos acostumados e temos que usar as ferramentas que o contato nos deu, como a internet, para poder sobreviver”, explicou Ubiratan, o Bira.


Ubiratan em Berlim. Foto: Divulgação

À Continente, ele traduziu o que sua mãe (que não fala a língua imposta pelo colonizador português) pensa sobre a experiência de viajar para divulgar Ex Pajé: “É muito bom para as pessoas do mundo inteiro ver um pouco da nossa vida, um pouco da nossa cultura, o nosso dia a dia, fazendo artesanato, buscando o cará, a batata-doce, a banana”.

Ex Pajé, ainda sem previsão de estreia no Brasil, é um dos finalistas ao prêmio de Melhor Documentário no Festival de Berlim, cujo vencedor será anunciado no sábado (24/2). Sobre o filme e o estado de coisas atual do nosso país, Luiz Bolognesi conversou com a Continente num saguão de hotel em Berlim.

CONTINENTE Que reação os Paiter Suruí tiveram quando você chegou e disse que queria fazer este filme?
LUIZ BOLOGNESI Eu fui até Rondônia para fazer pesquisa para um outro projeto, descobri o Perpera, tivemos uma conversa de cerca de duas horas, que até hoje não sei como foi direito, pois ele não fala português e eu não entendia nada de tupi mondé, e foi um encantamento mútuo. Decidi fazer esse filme e perguntei se ele topava. Ele quis saber o porquê e eu disse que ele tinha sido um pajé muito importante do povo. Ele pediu para pensar e, meia hora depois, disse que topava. Passei três semanas preparando o filme, sozinho com eles, e outras quatro semanas rodando com a equipe inteira.

CONTINENTE Do ponto de vista da linguagem, a câmera é bastante respeitosa, como se estivesse a contemplá-los em planos estáticos e longos. Como foi essa busca pela imagem?
LUIZ BOLOGNESI Tenho uma admiração muito grande pela cultura dos grupos indígenas que conheço. Admiro, respeito, são fortes, profundos, calmos e sabem lidar com a vida de maneira mais madura. Eu queria que o filme traduzisse essa beleza deles. De modo geral, sinto que muitos dos documentários que são feitos com urgência, com aquela câmera balançando, acabam criando uma imagem precária que se confunde e alimenta a ideia de precariedade dos povos indígenas. Preciso ter um olhar para elas que seja poético, não de urgência, porque isso vai acentuar a precariedade e não quero isso. Quero sublinhar a potência dessa gente, a beleza estética deles; são elegantes, cultos, se adornam. E quis eliminar essa câmera de documentário que corre que nem uma louca e optar por um olhar poético. Chegar perto dessa beleza deles era trabalhar com poesia no lugar da prosa. A intenção era de mais contemplação do que de muita intervenção e isso fundou a nossa linguagem.



CONTINENTE A convivência com eles modificou alguns planos?
LUIZ BOLOGNESI Sim, pois chegamos lá com atitude aberta e respeitando a maneira deles de ser. Não cheguei com um roteiro pronto. Tinha algumas ideias e fui formatando o resto ao chegar lá e conviver com eles. Fui entendendo o que podia ou não podia filmar e, assim, definindo tudo.

CONTINENTE Havia situações proibidas?
LUIZ BOLOGNESI Sim. Eu queria filmar as mulheres colhendo plantas medicinais, mas eles disseram “não, isso a gente não vai filmar porque isso é nosso, íntimo”. E eles também me pediram para filmá-los trabalhando, pois achavam importante para mostrar porque os brancos acham que eles não trabalham.

CONTINENTE O filme nunca esconde o desconforto e o conflito gerado com a presença da igreja, em especial nas cenas em que os Paiter Suruí pedem ajuda ao ex-pajé quando Kabena é mordida pela cobra.
LUIZ BOLOGNESI Esse é o conflito mais marcante na cultura deles. Quando eles se veem numa situação em que ela está à beira da morte, chamam o pajé escondido. Não queriam que a igreja soubesse, mas eles próprios fazem a sua dieta. De onde vem isso? Xamanismo piro. Não perderam uma cultura xamânica de 4 mil anos, não se joga isso fora, então esse conflito interno pertence a todos ali. Porque se trata da morte da cultura deles. Na hora em que aceitam essa igreja, que em nome de Jesus proíbe o pajé deles, a cultura vai para o ralo. Só sobra a casca. O filme é perturbador nesse sentido porque são, afinal, cinco séculos de história da América.

[Sobre esse momento, Kabena falou assim: “Quando fui mordida, vi os antigos pajés, que já morreram, e quando a gente morre, vemos os anciãos do nosso povo, e eles que decidem se vamos morrer ou não, mas aí o antigo pajé me disse que não era o meu momento, que eu apenas passaria uma dor e voltava, e foi quando voltei a abrir os olhos e pensar nos meus filhos”]



CONTINENTE Falando em perturbador, como você vê o momento atual do país para lançar o filme?
LUIZ BOLOGNESI Lançar o filme no Brasil de 2018 é fundamental pelo debate sobre quem queremos ser. A gente tem essa bancada evangélica crescendo no Congresso, entrando na política, e talvez o estado devesse ser laico, mas o prefeito do Rio de Janeiro é evangélico e há uma quantidade enorme de falsos pastores que ficam falando em nome de Jesus e só pregam o ódio. Essa não era a palavra de Jesus, ele não mandava destruir quem não acreditava nele. Nesse momento, vivemos uma grande intolerância, com os evangélicos incitando os seus seguidores a atacar candomblé, macumba, terreiros e os pajés. Temos que abrir os olhos: queremos isso? Somos o país da diversidade, de muitas culturas, de mais de 200 línguas, cores, maneiras de pensar, ou somos o país onde mulher não pode sair pra dançar e gay não pode existir? Temos que acordar para defender a diversidade e a pluralidade. Afirmar uma identidade destruindo todas as outras não nos interessa como nação. Temos que defender as culturas indígenas ou queremos um país de uma única cara? Queremos a diversidade e pluralidade ou uma espécie de monoteísmo e monoculturalismo e, com o país inteiro evangélico, quem não for vai à forca?

*A repórter especial viajou para cobrir o festival através de uma parceira entre a revista Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

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