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A voz silenciada das mulheres do Paraguai

Único filme sul-americano na competição da 68ª Berlinale, 'Las herederas' recorta, com delicadeza e coragem, silêncios e abstrações, o cotidiano de um grupo de mulheres paraguaias

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

16 de Fevereiro de 2018

'Las herederas' carrega força política também pela postura de fazer das mulheres protagonistas

'Las herederas' carrega força política também pela postura de fazer das mulheres protagonistas

Foto Divulgação

BERLIM - O mediador da entrevista coletiva do longa-metragem As herdeiras (no original, Las herederas), o único filme sul-americano na competição da 68ª Berlinale, avisava aos jornalistas que se acomodavam nos lugares enquanto o diretor Marcelo Martinessi, dois produtores e suas três atrizes esperavam o início deste clássico ritual pós-exibição para a imprensa na manhã de sexta (16/2): “Esta é a primeira vez, em muito tempo, que o cinema do Paraguai participa de um festival internacional”.

Coprodução Paraguai/Uruguai/Alemanha/Noruega/Brasil, As herdeiras recorta, com delicadeza e coragem, silêncios e abstrações, o cotidiano de um grupo de mulheres paraguaias. Há Chela (Ana Brun), em uma relação monogâmica antiga com Chiquita (Margarita Irún), ambas de uma certa forma aprisionadas na antiga casa em que vivem, que pertencera à família de Chela. A vida, porém, não é fácil e é preciso se desfazer de parte da mobília, em especial quando Chiquita vai cumprir pena na cadeia. A partir daí, Chela começa a circular com o carro velho prestando serviço de motorista para a vizinhança, sem perder o orgulho, mas se abrindo para a entrada de outras pessoas em sua melancólica rotina, a exemplo de Angy (Ana Ivanova).

Martinessi explicou que seu filme nasceu do desejo de falar “de uma classe social que sempre foi representada na caricatura e que é uma parte da sociedade que quer seguir a mesma há 50 anos”. O diretor citou o golpe de estado de 2012, que depôs o presidente Fernando Lugo, e as mais de três décadas de ditadura sob o general Alfredo Stroessner como elementos de força simbólica no entorno dos seus personagens. “Essas mulheres sofreram e se acostumaram com os mecanismos repressivos da era Stroessner. Por outro lado, o filme evidencia uma sensação da sociedade paraguaia que é a seguinte: na casa de Chela, a atmosfera é mais de uma prisão do que na própria cadeia. É como se as pessoas estivessem acostumadas a ficar presas em suas casas”, comentou.

À Continente, ele observou que existe uma lacuna enorme no que se refere à produção de imagens do que se constituirá uma contranarrativa dos anos pós-golpe: “Eu era o diretor da televisão pública do Paraguai, vi o quão duro foi o golpe, mas acontece que no Brasil, no México e na Argentina, mesmo sob todos os anos de ditadura, estavam sendo narradas histórias maravilhosas. No Paraguai, não. Temos um único filme de 1969, chamado O pueblo, e depois só histórias oficiais”.

As herdeiras, contudo, não apenas carrega uma importante força política por esse aspecto, mas também pela postura de dar voz, feição e matizes às protagonistas. "As mulheres falam e os homens são todos personagens secundários”, observa a atriz Ana Ivanova. "Isso não é qualquer coisa quando lembramos que, no nosso país, o Parlamento acabou de reprovar a Lei de Gênero. Ou seja, o Paraguai prossegue na tentativa de invisibilizar todas as mulheres”, salienta.

Houve outro momento tocante na conversa entre a equipe de As herdeiras e jornalistas de diversos países do planeta – na Berlinale, as coletivas são, obrigatoriamente, traduzidas em alemão, inglês, francês e espanhol. Ana Brun chorou quando começou a responder a pergunta da Continente – de que maneira as atrizes se aproximaram do roteiro para construir e desenvolver seus personagens? “Me libertei da minha própria vida...”, sussurrou. Foi bastante aplaudida e houve lágrimas também entre os jornalistas – eu fui uma delas. Por quê? Talvez porque de fato existe algo de intangível e inexplicável na relação que se estabelece entre os filmes apresentados e as milhares de pessoas que o veem – cada uma delas capaz de estabelecer seus próprios pontos de diálogo ou repulsa com aquela trama apresentada.

Porém, neste filme do Paraguai, um país que nunca esteve em competição em Berlim, aquelas mulheres representavam não apenas a falência de uma sociedade que, como várias na América Latina, sucumbiu diante de ditaduras militares no século XX, mas também a opressão de uma sociedade – e aí o conceito se estende para todo o mundo capitalista e ocidental – que sempre se acostumou a posicionar o feminino em segundo, terceiro, quiçá último plano.

Uma atriz que, ao admitir que incorporar a personagem era exorcizar a própria vida, ratifica o cinema como uma das trincheiras ideais para o debate atual da necessidade de dar mais voz às mulheres. Como bem disse Ana Ivanova, “a história das mulheres é também a história do Paraguai e nela, não importa muito o que se conta, mas o que se oculta”.

Em tempo: As herdeiras deve circular por festivais brasileiros no segundo semestre de 2018, segundo o diretor Marcelo Martinessi.

*A repórter especial viajou para cobrir o festival através de uma parceira entre a revista Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

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